quinta-feira, março 26, 2009

Somente fãs ou a religião do novo milênio?


Estudiosos comparam o comportamento dos fãs de séries de fantasia e ficção científica no Brasil a religiosos

Por Clinton Davisson

Baseada em estudos sobre mitologia do pesquisador Joseph Campbell, Star Wars tem o poder de criar comportamentos que lembram muitos casos de religiosos que mudam sua vida depois de conhecer as revelações de Cristo, Maomé, Buda, Alan Kardec, entre outros. As semelhanças são muitas. Assim como todo muçulmano precisa ir a Meca uma vez na vida, existem peregrinações quase obrigatórias no mundo dos fãs e não necessariamente somente de Star Wars. Para o analista de sistemas Carlos Cardoso, 40 anos, o fascínio veio com outra série de ficção científica: Star Trek, ou Jornada nas Estrelas. No universo do Capitão Kirk e do Sr. Spock, Carlos reconheceu seu deslumbramento pela tecnologia e se tornou um trekker, ou seja, um fã assumido do universo criado por Gene Roddenberry na década de 60. “O que me capturou foi a visão utópica da humanidade, mostrando um mundo ideal onde todos são reconhecidos por seus talentos e capacidades e, mais importante, todos têm talentos e capacidades”, explica. Embora faça questão de frisar que não vê Star Trek como algo além de uma série de Tv da qual gosta muito, Cardoso foi em 2004 na Star Trek Experience, um incrível parque temático construído em Las Vegas, nos EUA, no que ele chama de peregrinação pessoal. “Para um trekker, ir a este evento é como ir a Meca para um muçulmano”, conta Cardoso que confessa não ter sido muito racional durante a viagem. “Vi uma coleção de armas klingon em uma das paredes que faria qualquer um pensar em besteira. Ah, se eu roubasse isso e corresse o bastante... Se bem que dificilmente uma Bath'let (uma mistura de foice com lança) passaria despercebida pela segurança do aeroporto”, brinca.

Fãs ou fanáticos?

A palavra “fã” é uma contração de “fanático”, originária do latim fanaticus, derivada de fanus, que significa templo, capela. Antigamente, a palavra era empregada especialmente em alusão aos sacerdotes da deusa romana Cibele. Vários estudiosos concordam que os laços que ligam o fanático religioso e o fã são estreitos. A antropóloga Carmem Rial, da Universidade Federal de Santa Catarina, é pós-doutorada em antropologia visual pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na França, afirma que a adoração a estes novos ícones da sociedade guarda semelhanças enormes com o ato religioso. “O estudioso Edgard Morim afirma que existem ídolos contemporâneos, que chama de Novos Olimpianos, substituindo as divindades antigas no seu papel de objeto de culto. Assim como na religião, estes fãs também se dispõem a viajar para locais tidos como sagrados e colecionam suas próprias relíquias na forma de brinquedos, cartazes, dvds, etc”, explica Carmen. Para ela, não há nada de ruim ou anormal em querer comprar um brinquedo ou mesmo viajar por causa de um filme, desde que não haja exageros. A antropóloga inclusive também gosta de Star Wars e não perdeu a oportunidade que teve, a alguns anos, de visitar a cidade de Tatooine, na Tunísia, onde foram feitas as filmagens da casa de Luke Skywalker. “George Lucas usou o nome do lugar para batizar o planeta deserto”, comenta.
A semelhança entre religiosos e fãs é normal para o professor José Luiz Ribeiro, da Universidade Federal de Juiz de Fora, doutor em comunicação e cultura. Ele afirma que desde a pré-história o ser humano tem a necessidade de se organizar em clãs e reconhecer suas semelhanças. “Hoje não é diferente, pois vivemos numa sociedade culturalmente fragmentada onde principalmente os jovens buscam um modelo-guia para moldar sua própria identidade, e acabam encontrando isso nessas novas mitologias”, explica, destacando que tecnologias como a Internet ajudam a aproximar fãs e também religiosos em todo o mundo.

Tribos
Mas será que o cinema vai substituir as igrejas algum dia? Para os estudiosos isso não deve acontecer, ao menos não tão cedo. Segundo a psicóloga Cynthia da Costa Losada, essa linha ainda está longe de ser cruzada. Mas dá para se dizer muito sobre o momento da vida e a personalidade de uma pessoa através de seus filmes ou suas séries preferidas. “Embora tenha momentos muito diversos, em Jornada nas Estrelas geralmente o objetivo é explorar o universo em conjunto, reproduzindo mais um clima familiar, analítico. Já em Star Wars o ambiente é mais idealista, competitivo, de um time, ou grupo, lutando por um objetivo comum”, diz, lembrando que há momentos na vida para ser mais ativo, lutar por um ideal, e há momentos para ser mais explorador.
Assim como as religiões, há divergências sérias entre fãs de correntes diferentes. Para Oswaldo Geovanini, mestre em ciência da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é normal que determinadas tribos passem a querer rivalizar com outros grupos. “Só se tem cultura quando se forma um grupo”, explica, destacando que as séries televisão e cinema acabam gerando valores e comportamentos em comum. “E estes valores acabam fazendo com que estes grupos se reconheçam, se atraiam e se diferenciem de outros. É como se tudo se transformasse em um jogo. Isto é algo muito próprio desta civilização moderna onde as pessoas se confrontam cada vez menos fisicamente, mas sim, por meio das idéias”, avalia.
Embora tanto O Senhor dos anéis quanto Star Wars falem de mundos complexos criados por autores que se basearam em mitos antigos, é comum haver divergências entre os fãs de ambas as séries. “Eu vejo os fãs de Tolkien mais como pessoas que gostam de ler. Afinal, o autor criou obras enormes de centenas de páginas. Quem gosta de Star Wars geralmente é mais um fã de cinema”, conta a analista de sistemas Thaís Cristina Belonia que, em 2005, viajou com mais oito amigos brasileiros para a cidade inglesa de Birmingham, para a Tolkien 2005, uma convenção mundial de fãs de O Senhor dos anéis. Na época, Thaís era presidente do Conselho Branco, o fã-clube oficial de Tolkien no Rio de Janeiro.

Provocações

Assim como no mundo do futebol, entre os fãs de ficção científica é comum haver provocações entre as tribos. Piadas sobre a sexualidade de Frodo e Sam de O Senhor dos Anéis incomodam Thaís. “Não tenho nada contra os gays, mas a verdade é que Tolkien descreveu o relacionamento deles inspirado na camaradagem dos soldados em batalha que ele próprio vivenciou lutando nas trincheiras na Primeira Guerra Mundial. Não havia intenção de descrever nada homossexual ali”, defende.
Já para Cardoso, provocar os fãs de Star Wars é, às vezes, inevitável, mas nada que o levasse às vias de fato, isto é, a uma agressão física. “Seria covardia bater em um sujeito brandindo uma espadinha de plástico com uma lanterninha dentro”, provoca.
Em 2003, o Conselho Jedi Rio de Janeiro produziu um curta-metragem chamado A Casa dos jedis. Uma divertida paródia da Casa dos artistas só que com personagens de George Lucas enfurnados em um apartamento. A exibição do vídeo foi uma das atrações do Jedicon 2003. Uma das cenas que mais arrancou gargalhadas e aplausos da galera foi logo no início, quando um penetra vai entrando na casa vestindo o uniforme da Frota Estelar. Rapidamente, Darth Vader se encarrega pessoalmente de sufocar até a morte o trekker invasor com o poder da força. O auditório delirou com a piada.
Para Cynthia, a provocação pode ser um exercício de competitividade construtiva, mas há limites. “Não se pode perder o respeito pelo ser humano, pois, quando se perde isto, a coisa passa a não ser saudável. É o mesmo que ocorre quando torcidas organizadas de times de futebol passam a praticar atos violentos”, adverte.

A importância dos fãs

Embora a rivalidade possa ser uma constante entre fãs, é na união que este grupo descobre a verdadeira natureza de sua força. Um exemplo clássico foi o movimento liderado pela norte-americana Betty MacCarthy, ou Bjo Trimble, como ficou conhecida, no final dos anos 60. Ela liderou uma campanha envolvendo milhares de trekkers nos EUA, que enviaram cartas à rede de TV NBC adiando o cancelamento da primeira Jornada...
Cynthia afirma que organizações como fãs clubes não são diferentes de outros gêneros de opinião pública. “Como na política e no futebol estes grupos podem fazer a diferença. É só lembrar que uma torcida organizada pode levar seu time a vitória ou mesmo a uma derrota. Tudo depende do grau de interação da torcida com o time, ou, no caso, dos criadores da obra com seus fãs”, conclui.
Carmen adverte, entretanto, que, embora venha crescendo nos últimos anos, o poder dos fãs sobre o autor e a obra ainda é limitado. “Nas novelas brasileiras é fácil perceber como o público interfere e praticamente reconstrói uma obra. Mas quando falamos da indústria cultural norte-americana a coisa fica mais complexa, pois um mesmo filme pode ser visto de maneiras diferentes por grupos diferentes. É impossível agradar a todos, e a opinião de um grupo de fãs nem sempre corresponde à realidade mercadológica”, afirma.

Clinton Davisson é jornalista especializado em cultura e autor de dois romances de ficção científica.

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