sábado, dezembro 09, 2017

Westworld – A série (sem spoilers)




No desespero de tentar fazer um novo Game of Thrones, a HBO resolveu encurtar o verdadeiro Game of Thrones porque estava ficando muito caro e aí fez uma série mais cara ainda. Após a primeira temporada, a constatação do óbvio: Westworld não é Game of Thrones e deixou muita gente irritada com isso. No meu caso, fiquei irritado porque não havia necessidade de gastar grandes somas de dinheiro numa série que se destaca justamente pelas sutilezas e interpretações. Mas se essa grana toda foi investida a maior parte no elenco, a gente até perdoa, porque trata-se de dois pontos fortes de Westworld: elenco e roteiro.
Ironicamente, a surpresa agradável reside no fato de Westworld não ser Game of Thrones. Não se trata de uma imitação, de uma tentativa de repetir fórmulas parecidas. De fato, a única semelhança entre as duas séries é a profusão de “nudes” jogados na tela e que, honestamente, não atrapalha em nada a história, ao contrário, os nus fazem parte da atuação agora muito mais que em Game of Thrones. Temos peitos, bundas e pintos para todos os gostos. Se você é moralista aconselho a não ver nenhuma das duas séries e procurar uma igreja ou um mosteiro. Já vou avisando que há sexo nesses lugares também.
Fora isso, Westworld é pura ficção científica com pitadas de western. Baseado no filme de 1973 escrito e dirigido por Micheal Crichton que trazia a história de um parque que com três ambientes que simulavam épocas distintas: o velho oeste, a era medieval e a Roma antiga. Neste cenários, robôs incrivelmente realistas proporcionavam aos humanos o prazer de matar, roubar, estuprar e cometer os maiores atrocidades de maneira impune, uma espécie de GTA ao vivo. Tudo vai bem até que os robôs começam a bugar e querer matar os humanos sem razão aparente. Lembrando que o mesmo Micheal Crichton que, anos depois, escreveria o livro Jurassic Park que viraria o famoso filme de Steven Spielberg (roteiro também de Crichton) e que também fala de um parque aonde as atrações se voltam contra os visitantes.
Já a série foca apenas (ao menos nessa primeira temporada) no mundo do velho oeste. Já em relação à psique dos personagens, ela vai mais fundo e, claramente, escolhe o lado dos robôs. Assim, ficamos conhecendo Dolores (Evan Rachel Wood), uma bela jovem que vive intrigada com sua própria realidade. Ela busca uma postura otimista na vida enquanto é ocasionalmente morta e/ou estuprada. Sua narrativa regular envolve presenciar a morte de seu pai e sua mãe, só para ser salva por um “hospede” humano que quer viver a experiência de ser o mocinho da história e salvar a bela em perigo.
Nem todos os hóspedes, porém, querem ser mocinhos. A grande vantagem do lugar é justamente ficar livre de limitações morais. Imagine um lugar em que todas as pessoas que fazem comentários anônimos em sites de notícia pudessem fazer tudo que postam? Pois é... Assim, conhecemos o frio e sinistro homem de preto (Ed Harris) que está a mais de 30 anos jogando regularmente no parque e que tem uma queda para cometer atrocidades com mulheres, crianças e qualquer coisa que cruze o seu caminho.
A exemplo do Doutor Hammond de Jurassic Park, temos o Doutor Robert Ford (Antony Hopkins)como o dono e diretor do parque com ideias muito próprias sobre suas criaturas e umas intriguinhas entre a equipe e a diretoria. Temos também a figura de Bernard (Jeffrey Wright) como o segundo em comando. Um homem que parece compensar as perdas pessoais de um filho morto no passado com um apego especial aos robôs como se esses fossem seus novos filhos.
Como toda boa série, temos várias histórias paralelas, desde a dupla de novos hóspedes, o inocente Willian (Jimmi Simpson) e seu cunhado babaca, Logan (Ben Barnes). A robô prostituta (Thandie Newton) e o bandidão local Hector Escaton (Rodrigo Santoro) sempre querendo infernizar a cidadezinha local para roubar um cofre.
Como eu não sou exatamente um apaixonado por filmes do velho oeste, não consigo imaginar alguém pagando para viver nesse mundo. Aliás, tenho sérias dúvidas se iria caso me pagassem. E mesmo se houvessem na série cenários medievais e romanos como no filme, por mais que goste de história, tenho horror a banho frio. Então, parte da motivação da coisa para mim já é fraca. Há certos mistérios dentro de mistérios na série que incomodam por lembrar da má resolução de Lost, série que eu gostei muito mas, como a maioria dos seres humanos que a assistiram, não agradei do final. Westworld de fato abusa dos chamados mistérios não resolvidos, por exemplo, nunca fica claro como controlam um lugar tão gigantesco com tantas narrativas simultâneas e como técnicos e diretores fazem para chegar tão rápido em toda parte. O sistema de segurança dos parques de Micheal Crichton também são uma droga e seus funcionários não passariam um psicotécnico da Petrobras.
Dito isso, vamos a parte boa. Há uma ousada narrativa não linear que é diferente dos flashbacks e flashfowards de Lost e isso contribui para que fiquemos sempre com um pé atrás sobre o que está realmente acontecendo.
As discussões que a série se propõe sobre o que é identidade, o que é consciência, o que é estar vivo, renderão pano para muito estudos de narrativas num futuro bem próximo. As interpretações são impecáveis. Antony Hopkins não sai muito do padrão Hanibal Lecter, mas o fato é que ter um parque de robôs dirigido por Hanibal Lecter é realmente uma ideia sinistramente interessante. Rodrigo Santoro faz bonito como o robô estilo clichê de mexicano bandoleiro, só que charmoso. Jeffrey Wright está excelente como Bernard, mas as melhores chances de ganhar muitos prêmios estão com a dupla feminina Thandie Newton e Evan Rachel Wood. Ambas são robôs que vão aos poucos tomando consciência de sua própria natureza, cada uma a seu jeito e cada uma reagindo a sua maneira. Além da soberba interpretação de máquinas divididas entre a crescente consciência e questionamentos sobre suas identidades, também há momentos em que o lado “mecânico” toma conta e uma crise de choro pode ser bruscamente interrompida por um comando de voz. 
A atuação delas é literalmente visceral. Thandie Newton aparece em 40% de todas as suas cenas totalmente nua. Ao mesmo tempo em que chama a atenção para o belo corpo, também não deixa de mostrar com as rugas e os seios digamos não tão firmes aos 44 anos, a bela atriz mostra a decadência do que seria uma prostituta em final de carreira, desencantada com a vida, podemos sentir a dor que ela carrega de suas muitas vidas e, ao mesmo tempo, a força de uma máquina que se descobre superior aos seus criadores. Assim, quando a vemos nua em uma sala, atuando com dois homens vestidos, é impressionante como fica claro que a vulnerabilidade é toda dos homens e não dela.
Já Evan Rachel Wood às vezes é mostrada quase como uma estátua ou uma pintura. E quando o inocente Willian começa a se apaixonar por ela, parte de nós se apaixona junto.
Enfim, o grande trunfo de Westworld está no roteiro bem amarrado, infelizmente, isso só dá para saber com certeza vendo todos os episódios - e mais de uma vez. Talvez isso seja pedir demais para uma plateia, talvez não. Mas o fato é que se trata de uma série inteligente que buscou uma personalidade própria ao invés de tentar ser um Game of Thrones no oeste. Talvez falte um personagem para a gente torcer como Tyrion Lennister, ou um vilão que a gente queira morto como Joefrey. Não há um grande perigo como os caminhantes brancos ou uma grande batalha a ser travada, mas Westworld tem reflexões sobre a natureza humana que chegam em boa hora nesse mundo parece se deparar com uma encruzilhada aonde quem posava de mocinho não convence mais ninguém, deixando espaço para as caricaturas populistas de Putin, Trump, Maduro ou Bolsonaro que oferecem descaradamente fantasias infantilizadas. É uma série que, no final das contas, faz pensar em uma época em que precisamos realmente pensar e questionar a realidade em que vivemos.

segunda-feira, abril 17, 2017

A Bela e a Fera




Nova versão live-action de clássico da Disney é burocrática, mas agrada fãs do original

O sucesso do desenho animado A Bela e a Fera de 1991 foi tanto que gerou também um musical na Broadway, avenida de Nova Iorque em que ficam os teatros mais badalados dos EUA. A peça atraiu multidões e ficou em cartaz de 1994 até 2007. Agora, com o sucesso de outras versões com atores reais de desenhos da Disney, como Malévola e Cinderela, era inevitável que A Bela e a Fera também ganhasse sua versão live-action. Porém, muitos não perceberam é que essa versão é muito mais influenciada pelo musical da Broadway que propriamente pelo desenho animado. Por isso, quem for ver, se prepare para uma quantidade bem maior de números musicais e canções que o desenho animado.

Baseado em um conto francês, escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, em 1740, conta a história de uma moça que, para salvar o pai, acusado de ladrão, aceita ser prisioneira de um monstro que na verdade é um príncipe amaldiçoado. No filme de 1991, assim como nessa nova versão, sobra maldição para os empregados do príncipe também que acabam se transformando em parte da mobília, da prataria e até da louça do castelo. Também como na versão em desenho animado, a maldição só será quebrada se o monstro conseguir amar e ser amado. E isso tem que ocorrer antes que uma rosa mágica perca totalmente as pétalas.

Protagonizado pela eterna Hermione de Harry Potter, Emma Watson, o filme ainda tem vários atores famosos fazendo as vozes dos empregados transformados. Assim, Ewan McGregor, o Obi Wan de Star Wars, faz o castiçal Lumiere, enquanto Ian McKellen, (Magneto e Gandalf) faz o relógio Cogsworth. Quem rouba o show é Luke Evans como mal caráter Gaston que está hilário como o ótimo vilão que toda boa história merece.

O filme, porém, é irregular, embora cumpra o papel de divertir especialmente quem é fã do desenho original. Várias partes do desenho são reproduzidas de forma idêntica, principalmente a icônica cena da dança, com Emma Thompson substituindo a lendária Angela Lansbury cantando a música tema que, inclusive, ganhou o Oscar em 1992. Há momentos belíssimos para arrancar suor dos olhos mais insensíveis. Mas eu confesso que chegou um momento que eu que pensei comigo: “Ah, não, vou ter que aturar mais uma canção!”. A maioria das músicas que não estavam no desenho são bem chatinhas. O maior defeito, entretanto, fica por conta dos efeitos digitais da Fera que, por problemas da produção, tiveram que ser refeitos às pressas. O plano original era que o ator Dan Stevens, o Matthew da série Downton Abbey, usasse maquiagem, mas a ideia não funcionou. Com a bilheteria chegando aos 500 milhões de dólares pelo mundo, entretanto, é fácil atestar que o filme herdou o charme, a simpatia e os dólares do agora clássico desenho de 1991.

Burocracia e polêmica

Atender as demandas do politicamente correto é sempre um desafio para a criatividade dos roteiristas, bem como a chance de atualizar uma história centenária sem que ela perca sua essência. No caso, trata-se de “Um conto tão antigo como o tempo” segundo a letra original da consagrada canção. A história fala de uma mulher presa por uma fera e que acaba se apaixonando por ela. Algo que há 300 anos, em um continente em que saber ler e escrever era privilégio de poucos, o casamento era algo arranjado por interesse e a noção de romantismo tinha mais a ver com a cultura muçulmana que com a europeia, era fácil de aceitar como uma bela história de amor.

Mesmo o desenho de 1991 foi alvo de críticas pesadas, a mais famosa na também animação Shrek de 2001, quando a princesa Fiona ao ser livrada do feitiço, faz o contrário do que acontece em A Bela e a Fera e assume definitivamente a forma de ogro, ou seja, ser feio ou mesmo monstruoso não precisa necessariamente ser uma maldição e você pode ser aceito  e ser amado sem precisar ser um modelo de beleza. O filme agora tenta contornar isso mostrando que a maldição foi desencadeada por uma bruxa exatamente porque o príncipe se recusou a ver a beleza interior.

A inclusão de negros no filme também causou polêmica. Houve protestos de alguns defensores do “historicamente correto” que não são necessariamente estudantes de história, ou saberiam que já havia muitos negros na França na época em que a história se passa, ou mesmo na época em que o conto foi escrito. Basta lembrar que o consagrado autor Alexandre Dumas, criador de Os Três Mosqueteiros, é negro e nasceu em 1802. Então, a inclusão de negros não é nenhuma grande ousadia, apenas uma correção. Já o personagem gay é tão caricato e paradoxalmente discreto que chega a decepcionar quem esperava algo mais ousado.

Finalmente, sobre a síndrome de Estocolmo, em que a prisioneira se apaixona por seu carcereiro, o filme usa a solução do conto, ou seja, a Bela só se apaixona pela Fera no momento em que esta lhe concede a liberdade de escolha. Entretanto, a rapidez com que a personagem de Emma Watson vai se interessando pelo monstro na medida em que vai passeando pelo castelo e descobrindo que ele tem uma biblioteca gigantesca, objetos mágicos e belos jardins, deixa a impressão que o filme não defende exatamente beleza interior, mas que você pode conquistar uma bela menina mesmo sendo feio, desde que você seja rico.


sexta-feira, abril 14, 2017

13 reasons why – sem spoilers

Obrigatório para pais e professores, série escorrega no roteiro mas acerta na discussão de responsabilidades


Depois de sofrer todo tipo de abusos físicos, psicológicos e sexuais, a jovem Hanna Baker de 17 anos se suicida. Antes, porém, ela grava 13 fitas cassetes (aquelas antigas, mesmo) contando quais foram as razões que a levaram a tirar sua própria vida.
As fitas chegam à casa de alguns amigos da menina com as seguintes instruções: ouça tudo e depois repasse para a próxima pessoa da lista. Nas gravações, Hanna enfatiza que, caso não seja obedecida, haverá sérias consequências, o que obriga os adolescente a obedecer à risca.
A série começa duas semanas após a morte da menina, quando as fitas vão parar nas mãos do jovem  Clay Jensen, com quem ela trabalhou na bilheteria de um cinema. Abalado ainda com a morte da amiga, ouvir as fitas é um processo doloroso para o rapaz. À medida que vai escutando, Clay compreende e se revolta com os motivos que levaram a bela jovem a se matar. Ele mesmo é o 11º motivo o que pressupõe que 10 amigos já escutaram as fitas antes dele. Aos poucos, vamos sabendo através de flashbacks como cada uma daquelas pessoas influenciaram para a decadência de Hannah.

Fugindo do maniqueísmo, a série mostra com eficiência como cada um dos envolvidos é, ao mesmo tempo, vítima e agressor de si mesmo, dos outros e, claro, de Hannah Baker. A começar pelo garoto com quem ela dá o primeiro beijo e trata de espalhar por toda a escola que ela é uma “piranha”. Fama que vai perseguir Hannah pelo resto de sua curta vida e com a qual ela não sabe lidar.

Um dos problemas de 13 Reasons Why está no velho hábito dos norte-americanos de colocar pessoas maiores de idade para interpretar adolescentes. Algumas vezes pode até funcionar, mas no caso de Katherine Langford de 20 anos (fará 21 dia 29 de abril de 2017) interpretando Hannah Baker com 17, fica difícil explicitar na tela a fragilidade emocional que a menina se encontrava. Sua voz nas gravações das fitas não soa como de uma pessoa a beira do abismo. Lembra mais alguém tramando friamente uma vingança. Talvez uma menina na idade certa retratasse melhor Hannah Baker.
Outro problema é o exagero e as incongruências do roteiro. Ficamos com a impressão que os verdadeiros opressores de Hannah são os roteiristas já que chega um momento em que tudo dá errado na vida da menina. Depois que ela morre, tudo parece dar certo em seu plano. Já que seus amigos obedecem cegamente suas instruções quando poderiam simplesmente destruir as fitas.
E nem todos os “Porquês” de Hannah são realmente convincentes. Alguns chegam a ser absurdos, como uma placa de trânsito quebrada que gera acontecimentos surreais. Ficamos com a impressão que faz parte da cultura norte-americana acreditar que qualquer pecado, por menor que seja, será punido com a culpa eterna ou ganhará proporções bíblicas.


Esticada para poder durar 13 episódios, a história fica dependendo da lentidão de Clay para escutar as fitas para poder manter o suspense. Entretanto, ele resolve julgar e punir todas as pessoas acusadas por Hannah, antes de escutar todas as fitas e saber da história completa, algo que muito ironicamente deixa o roteiro mais realista já que, se parar para pensar, apenas imita o padrão intelectual dos usuários das redes sociais que adoram julgar uns aos outros e consideram agressão quando alguém lhes tenta explicar alguma coisa.

Apesar desses problemas, a série produzida pela cantora Selena Gomez, não esconde que seu objetivo vai além de mero entretenimento juvenil. 13 Reasons Why é uma daquelas mídias obrigatórias para pais e educadores justamente porque acerta naquilo que realmente se propõe a fazer: servir como manual de instruções sobre como funciona a cabeça de um adolescente; mostrar como a sociedade ainda está mal preparada para lidar com o bullying, o assédio moral, o estupro e, principalmente, analisar os mecanismos que podem levar uma pessoa a tirar sua própria vida. E nesse ponto, a série é eficiente beirando a genialidade.

Em várias cenas, vemos como os adolescentes evocam o direito a própria privacidade com os pais como se fosse uma ação judicial. As tentativas dos pais de se aproximar, perguntando e por vezes implorando aos filhos para saber o que se passa na vida deles são angustiantes. Ao mesmo tempo, entendemos como a criação e histórico familiar de cada um influencia em seus respectivos comportamentos. Assim, descobrimos que a menina que age de forma homofóbica está na verdade protegendo os próprios pais, um casal gay, de receberem mais ataques homofóbicos. “Vão dizer que eu sou gay por ter sido criada por eles”, justifica. O jovem que sofre violência física por parte do padrasto, acaba não apenas descontando a raiva em quem ele reconhece como mais fraco (Hannah Baker como sempre), como também se resignando aos caprichos do amigo rico só para poder ficar mais tempo na casa dele e assim, fugir do padrasto.

Neste ponto, o suicídio de Hannah serve como ponto de partida para visitarmos a vida de cada um desses indivíduos que, longe de serem meramente maus ou bons, se mostram como pessoas de verdade. Até Hannah escapa de ser mera vítima da situação. Apesar de ser realmente uma pessoa essencialmente boa, ela é emocionalmente muito frágil. Não consegue lidar com bullying que sofre na escola, chegando ao ponto de não conseguir mais discernir quem é e quem não é realmente seu amigo. Isolada socialmente, ela ainda tenta erguer a cabeça e tropeça na própria desorientação emocional, decorrência óbvia de tudo que ela passou. Suas gravações são sim ao mesmo tempo uma vingança e uma denúncia. Ela também erra em muitos dos julgamentos que faz, algo que eu, pessoalmente, não vi como falha, mas como acerto no roteiro. As falhas do roteiro caem quase sempre em cima de Clay Jansen interpretado com muita competência por Dylan Minnette mas que sofre o peso de ter que segurar todas as pontas soltas da história. Então, há vários momentos em que Clay está claramente sendo manipulado por Hannah através das fitas e não se dá conta disso. Ele não só carrega nas costas toda a culpa pela morte da amiga, como também quer impor essa culpa aos outros personagens.

Embora muitos problemas no roteiro possam e estão sendo apontados por alguns bons críticos, arrisco a dizer que quem realmente lida ou lidou com adolescentes, principalmente em escolas, não vai ver muita coisa inverossímil não. Pelo contrário, as atitudes por vezes contraditórias (burras) dos personagens e que realmente acabam ajudando a costurar convenientemente o roteiro, soam extremamente plausíveis para quem já lidou com essa faixa etária (vamos ser honestos, adultos também são assim).

No final, a tão polemizada “cena gráfica” do suicídio foi feita com base em orientação de psicólogos e pedagogos para ser o mais desconfortável possível de se assistir, justamente para não incentivar ninguém e deixar bem apavorados os pais que assistirem.

Gatilhos da síndrome de werther

Nos tempos atuais é comum confundir a expressão “atitude corajosa” com “atitude certeira”. Entendemos ter coragem com acertar e errar com covardia. Isso está muito, muito, muito errado. Digo isso porque ao arriscar fazer uma série sobre o tema suicídio os produtores tiveram uma atitude realmente muito corajosa. E como a série está fazendo muito sucesso, é bem provável que as palavras coragem e sucesso passem a fazer parte da maioria dos textos dos defensores da 13 Reasons Why, grupo do qual eu também pertenço. Mas é necessário dizer que pessoas vão morrer por causa dessa série. E isso provavelmente já aconteceu. Isso não é motivo para demonizar a série, mas é necessário lembrar que se deve ter cuidado ao assistí-la e mesmo ao recomendá-la.

Em um dever de casa da faculdade de jornalismo fui entrevistar a assessora de imprensa da Polícia Militar de Juiz de fora no, agora distante, ano 2001. Não lembro o nome da mulher, mas nunca vou esquecer quando ela me falou de como os marginais se pautavam às vezes pelos jornais. Quando havia um assalto a taxistas, assim que este era noticiado, outros bandidos resolviam também assaltar taxistas na cidade. Isso era um paradoxo para a profissão de jornalismo, afinal, divulgar uma notícia sobre um crime era sim, um dever. Mas isso iria motivar outros crimes. E agora? Ela me esclareceu essa dúvida na hora. O bandido iria cometer outros crimes de qualquer jeito e com a divulgação dos crimes, os taxistas se precaviam, a polícia tomava providências e a onda de assaltos passava.

No caso do suicídio, a questão complica porque vítima e assassino são a mesma pessoa. Sendo assim, não divulgar uma notícia de suicídio era uma forma esquisita, mas eficiente, de proteger a vítima do assassino. Agora, conversar sobre o tema é um problema diferente e específico. Uma série que tem como tema principal uma menina que comete suicídio é, enfim, um produto extremamente necessário e até obrigatório. Eu diria até que se trata de um possível remédio, mas como tal, deve ser usado com parcimônia e talvez, dependendo do caso, só com acompanhamento médico.

Enfim, 13 Reasons why talvez não seja uma série recomendada para pretensos suicidas, mas para repensar o modo como tratamos uns aos outros.




domingo, março 26, 2017

Trilogia Before





A trilogia "Before" do Richard Linklater é um dos projetos mais poderosos sobre a natureza do amor em todos os tempos. O mais surpreendente é que não foi um projeto, mas algo tão natural quanto despretensioso.

Começou em 1995 com o filme Antes do Amanhecer (Before Sunrise) com uma história simples sobre dois jovens se encontrando em um trem e resolvendo passar um dia juntos. Com atuações impecáveis de Ethan Hawke e Julie Delpy, eles nos apresentam o americano Jesse e francesa Celine. O filme mostra os dois se apaixonando quase em tempo real. Não há tramas complicadas, mistérios ou reviravoltas. Não tem um vilão ou desafio. Apenas duas pessoas conversando e se apaixonando enquanto caminham pelas belas ruas de Viena. E acredite, é um dois filmes mais românticos já feitos.

No final, ambos tem uma ideia típica da idade em que se encontram, na casa dos 24 anos: não trocar sobrenome, telefone ou endereço, mas se encontrariam em seis meses no mesmo local. E o filme acaba deixando para nossa imaginação descobrir o que iria acontecer àqueles jovens e belos amantes.

A história terminaria por aí se não fosse um desses acasos da vida. O diretor Richard Linklater, que tecnicamente pertencia à série C do cinema americano, produziu um sucesso de bilheteria, no caso, A Escola de Rock com o doidão Jack Black. E o ator Ethan Hawke foi indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por Um Dia de Treinamento. Com dinheiro, poder e fama, os dois resolveram arriscar a fazer uma continuação daquele filme que não pedia uma continuação. Foi aí que, em 2004, veio Antes do Pôr do Sol (Before Sunset), mostrando o que havia acontecido com Celine e Jesse nove anos depois.

Descobrimos que a avó de Celine morreu perto do dia do encontro e ela acabou não podendo ir. Jesse foi e ficou dias procurando ela mas sem sucesso. A vida deles seguiu de uma forma cruel. Ambos sonhando um com o outro. Jesse casou-se porque sua namorada engravidou. Continuou casado por comodismo e por amar o filho, sempre sonhando secretamente com aquela francesa do trem. Celine tocou a vida da melhor maneira que pode, mas também sem tirar o garoto americano da cabeça. Enfim, Jessie resolve escrever um livro sobre aquele encontro na esperança de que, caso o livro fosse um sucesso, ele acabasse encontrando aquela mulher novamente. Deu certo. Em um lançamento em Paris, Celine aparece na livraria e os dois voltam a conversar e se apaixonar.

Mas se antes eles estavam na casa dos 24 aos, agora estavam com 33. A perspectiva muda. O rosto e o corpo dos atores também. O fogo da juventude que incendiava seus olhares em 95 se transforma quase em um desespero. É como se um visse no outro, a última oportunidade de ser feliz na vida.

O filme novamente termina em aberto. Desta vez, porém, temos certeza que os dois vão ficar juntos. Era quase o único caminho a ser seguido para manter a sanidade de ambos.

Embora Julie Delpy não tenha se tornado uma atriz de sucesso em Hollywood, sua carreia foi bem na França. Hawke e Linklater continuaram a fazer sucesso mundial com a força do cinema americano.

Inevitavelmente, nove anos depois, veio o terceiro filme Antes da meia-noite (Before Mindnight) em 2013. Pessoalmente, fiquei morrendo de medo. Por favor, não mexam novamente com Celine e Jesse. Deixe os dois no “Felizes para Sempre”, por favor?

Mas o trio não me escutou e veio o que, até agora, é o filme mais premiado da trilogia. Chegando inclusive a ser indicado ao Oscar de roteiro original e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz para Julie Delpy. É o filme mais pesado também.

Assim como a vida, a história segue. Agora Jesse e Celine estão casados (ufa!) e tem filhas gêmeas. O filho de Jesse de primeiro casamento já é um adolescente e vive com a mãe nos EUA enquanto Jesse tenta viver na Europa com Celine. Agora os atores estão com 42 anos. Pela primeira vez, temos uma cena de nudez de Julie Delpy mostrando os seios, o corpo exibe uma barriguinha, rugas, muitas rugas em ambos. A barbicha de Jesse começa a embranquecer.

Embora a paixão continue, estão agressivos e cruéis um com o outro. Metade do filme é briga e feia. O assunto traição vem à tona. Aqueles jovens de vinte anos atrás, apaixonados, agora discutem se é justa a divisão de tarefas domésticas. Ele um escritor de relativo sucesso, se mudou para a França, - algo que para um americano é bem doloroso - para ficar perto dela, longe do filho. Celine, por sua vez, continua trabalhando. De noite, é ela quem cuida das gêmeas para ele escrever. Ou seja, ela faz aquelas típicas jornadas de trabalho dupla, no serviço e depois em casa. Ele escreve (acreditem em mim, é um trabalho que consome o indivíduo) e convive com a culpa de não estar sempre presente.

Em seu terceiro ato, a trilogia não tem medo de mostrar o lado mais cruel do “Felizes para Sempre” dos contos de fadas. Novamente a história termina de forma aberta. Novamente, entendemos que o casal vai permanecer junto, pois NOVAMENTE os atores nos convencem de forma absoluta de que Jesse e Celine se amam apaixonadamente e literalmente nasceram um para o outro. Mas algo mudou radicalmente e do casal apaixonado e puro de 1995, passamos para o casal estressado de 2013.

De certa forma, a trilogia “Before” é um magnífico estudo sobre o amor verdadeiro e poderoso que une aqueles dois seres humanos que acompanhamos durante vinte anos. Mas também pode ser um cruel filme de terror se assistido em sequência. A deterioração de corpos e sentimentos é honesta, cruel e assustadoramente bela. Manter uma relação tem seu preço. O “felizes para Sempre” cobra tributos e estes são altíssimos. Isso nunca foi mostrado nas telas de cinema com tanto realismo. Entretanto, talvez seja uma das poucas obras românticas a mostrar o amor em “tempo real” de forma tão verdadeira, sem idealizações, sem concessões. Ainda assim, continua sendo belo, continua sendo romântico.

Tecnicamente os filmes são impecáveis com diálogos, interpretações e direção de um realismo impressionante. Os atores vestem os personagens de tal maneira que muitos fãs se apaixonam por eles a cada filme. Os personagens são complexos, ricos e multifacetados. No último filme, Julie Delpy está particularmente impressionante pela transformação física e a francesinha inteligente de 95 deu lugar a uma mulher maldosa, sofrida e que parece prestes a explodir. Ethan Hawke não é exatamente um ator de grandes expressões, mas se entrega a Jesse e o jovem hiper-romântico vai se tornando um cara que carrega a culpa e o comodismo de uma vida em que consegue sucesso como escritor, mas fica dilacerado por viver em um país distante e longe do filho. A química entre os atores é tão grande que estranhamos muito o fato de nunca terem sido casados um com o outro.


Uma curiosidade ainda mais cruel sobre a trilogia, é que o primeiro filme foi inspirado em um encontro de Richard Linklater com uma jovem chamada Amy Lehrhaupt na Filadélfia. Assim como no primeiro filme, os dois passaram pouco tempo juntos e não mais se encontraram. Assim como no segundo filme, Linklater fez sua obra com um desejo secreto de poder assim, reencontrar aquela moça. Infelizmente, a vida foi mais cruel que a arte e Amy morreu em um acidente de moto meses antes da estreia de Antes do Amanhecer.

Acho relevante dizer que literalmente cresci e envelheci junto com Celine e Jesse. Quando vi o filme de 1995, pensei: É isso que eu quero para a minha vida! Quero uma Celine para mim! Encontrei e já estava casado com ela 2004 quando o casal se reencontrou em Paris e os apresentei para a então esposa. Quando assistimos em 2013 a Antes do Meia-noite, o impacto foi tão grande que nos separamos menos de um ano depois. Então, aconselho a assistir com muita cautela.

O diretor e os atores, que agora também são roteiristas, pretendem mostrar Jesse e Celine ainda mais uma vez, quando completar mais nove anos. Devemos encontrá-los agora na casa dos 50 e tenho medo do que vem por aí, embora tenha certeza que será incrivelmente belo e poético, além de, é claro, assustador. Confesso que aguardo ansiosamente por esse encontro com esses velhos amigos.

Enfim, apesar dessa crueldade em não dourar a pílula, não há como negar que se trata de uma obra poderosa e apaixonada que desconstrói o romantismo sem destruí-lo. A intenção não é botar água no chope dos românticos, mas dizer que, apesar de tudo, não há coisa melhor (e mais trabalhosa) que estar com a pessoa que amamos. Acredito que essa trilogia seja recomendada a todo mundo, mas principalmente a quem quer entender essa coisa louca que chamamos de amor.




domingo, fevereiro 05, 2017

Lúcifer – resenha da primeira temporada (sem spoilers)

Antes de mais nada, não li as versões em HQ mas já sei que desvirtuaram muito o personagem. Então, vamos nos ater a série.
Bom, para quem não sabe, Lúcifer é uma série de tevê que conta a história de ninguém menos que o diabo em pessoa. Ele se enche de tomar conta do inferno e resolve largar tudo e abrir uma boate em Los Angeles chamada Lux. Sim, trata-se de uma comédia com lances dramáticos e muitos elementos policiais.
Cinco anos depois de chegar ao mundo dos humanos, Lúcifer (Tom Ellis) já está devidamente estabelecido e feliz com sua vida de dono de boate; acompanhado por sua aliada, um demônio chamado Mazikeen (Lesley-Ann Brandt), quando seu irmão Amenadiel (D. B. Woodside), outro arcanjo, chega com a missão de convencê-lo a voltar para seu emprego antigo, ou seja, tomar conta do inferno. Lúcifer continua fazendo pactos e trocando favores. Nenhuma mulher parece imune ao seu charme e ele continua, claro, imortal. Para desespero de Amenadiel, ele não tem vontade alguma de retornar para o inferno.
Tudo muda quando o diabo conhece a detetive Chloe Decker (Lauren German) que não apenas parece imune a todo seu charme, como também de alguma forma o torna vulnerável (mortal) quando está próxima a ele.
Por um lado, Lúcifer parece uma cópia escancarada de The Mentalist e um pouco também House, ou seja, um personagem totalmente anárquico, que caga para as regras e normas da sociedade mas que acaba desarmando as pessoas e resolvendo crimes com seus talentos. A parte mais fraca da série é justamente cair para o lado policial, ou seja, todo episódio tem um crime a ser desvendado por Satanás. É muita preguiça e desperdício de personagem. Os poderes de Lúcifer também são incrivelmente limitados. Ele apenas tem seu charme, persuasão, super força e invulnerabilidade. Para descobrir quem cometeu um crime, ele precisa investigar. Nada de onipotência e onipresença. Mas vamos combinar, se ele fosse mais poderoso, daria um trabalho danado para os roteiristas e inviabilizaria o orçamento da série. Ou seja, aceitar um diabo com poderes limitados é fundamental para se divertir com a série.
Já por outro lado, a série tem seus muitos pontos fortes. Primeiro com os atores. Tom Ellis está perfeito como um diabo fora do convencional e, ao mesmo tempo, bem pesquisado. Afinal, não vamos esquecer que a história original (depois da Bíblia, claro) é do genial Neil Gaiman (que criou o personagem, mas não fez a primeira HQ solo) que sempre faz o dever de casa. A igreja (católica) não atribui oficialmente Lúcifer como um ser causador do mal e sim como um anjo caído. E é assim que Tom Ellis o interpreta, como um filho rebelde de Deus que recebeu a missão de cuidar do inferno e, ao mesmo tempo, questiona o amor de seu pai. Fascinado com a raça humana, ele se ressente de ter todo o mal atribuído a ele, uma vez que os humanos possuem o livre arbítrio. O Diabo de Ellis se mostra como uma criança mimada com um brinquedo novo nas mãos, nesse caso, a população de Los Angeles. Ao mesmo tempo, o ator mostra determinada fragilidade e simpatia que nos faz torcer pela sua versão do Coisa Ruim.
A versão apresentada por Gailman e pela série já causou polêmica e protestos entre religiosos por apresentar um diabo tão simpático, mas aí não é problema meu.
Outro diferencial de Lúcifer é como os personagens e situações vão sendo explorados de maneira inteligente. Um dos momentos geniais da série é quando Lúcifer resolve se consultar periodicamente com uma psicóloga (Rachael Harris) para resolver sua “crise dos 10 bilhões de anos” e tentar resolver as questões de família.
As relações com o irmão Amenadiel interpretado pelo ator negro D. B. Woodside rendem também ótimas situações. 
Lauren German não economiza em beleza para tornar a sua detetive, Chloe Decker, um elemento típico de shippers, ou seja, aquele relacionamento clichê em que todos os expectadores vão ficar torcendo para acabar em romance entre ela e Lúcifer. Chloe é uma personagem muito bem montada. É filha de uma atriz de sucesso relativo dos anos 80 (Rebeca de Mornay) e de um policial. Sendo assim, antes de seguir a carreira do pai, ela tentou seguir a carreira da mãe, fazendo um filme adolescente em que aparece nua, algo que gera boas situações de humor e também funciona para explicar bem as motivações da personagem. Além disso, ela é separada e tem uma filha Trixie (Scarlett Estevez) que está sempre testando a paciência e a simpatia de Lúcifer, que diz que não gosta de crianças mas, é claro, vai ter seu coração demoníaco conquistado por Trixie.
Apesar de seguir a fórmula episódica de crime da semana a ser desvendado, o roteiro é bastante inteligente quando demonstra consciência dos clichês com os quais está lidando. Assim, o ex-marido de Chloe e pai de Trixie, Dan (Kevin Alejandro) é um policial que tem sua subtrama com segredos e reviravoltas. Claro que queremos que ele seja o cara mal para justificar o possível romance entre Lúcifer e Chloe. O roteiro sabe disso e brinca (tortura) com a gente sem nos chamar de idiotas.
Enfim, Lúcifer nos passa a impressão de ser uma série com pouca pretensão, pouco dinheiro (os efeitos especiais são discretos e ruins), mas que entrega sempre bons roteiros e ótimas atuações.
Se você for um religioso pouco inteligente, do tipo que comemorou a morte da esposa de Lula, melhor ver algo na Rede Record. Também não é indicado a quem busca uma trama mais séria e densa. Lúcifer é apenas um pouco mais adulto e mais apimentado que Once Upon a Time (que eu ainda adoro). 
Mas confesso que, mesmo achando alguns episódios repetitivos, acabei gostando do resultado final, ao menos da primeira temporada. Que venha a segunda.