quinta-feira, janeiro 05, 2012

120 anos de Tolkien: A Caverna, o Dragão, o Anel e o Guarda-roupas


Por Clinton Davisson

Conheci Tolkien na primeira metade da década de 80 graças ao trailer de O Senhor dos Anéis de Ralph Bakshi, aquele desenho animado esquisito, carregado de clima sombrio. Demorou um ano para arrumar o vídeo mesmo, mas o trailer já me fazia tremer de excitação com aquele universo sinistro e rico. Anos mais tarde já conhecera, também através de desenho, o universo de Nárnia, quando a Rede Globo passou, num domingo, o desenho O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas, feito pelo mesmo Bill Melendez que trouxera a turma do Charlie Brown. Eram universos vivos, pulsantes, tão reais quanto a minha vida pacata em Volta Redonda. Dava para ver que a família do Senhor Castor possuía uma história e que Gollum realmente tinha um passado de sofrimento e tormento. Bem diferente dos desenhos que via na TV na época. O Homem-Pássaro, por exemplo, certamente vivia sentado naquela sala, único cômodo de seu quartel general e não tirava aquela máscara nem para ir ao banheiro. Tomar banho então, impossível. Aliás, o cara não devia nem comer alguma coisa para viver, só ficava lá, esperando um vilão para enfrentar.

Mais tarde veio o desenho Caverna do Dragão, talvez a maior das injustiças da mídia mundial pois, cancelado nos EUA, é um marco cultural no Brasil, sendo amplamente conhecido por pessoas de todas as idades (eu sei porque perguntei para jovens nas escolas de hoje e a popularidade continua soberana) mesmo após 25 anos do cancelamento.

Embora chupasse elementos da mitologia de Tolkien, Caverna do Dragão é muito mais um plágio descarado da obra de C.S. Lewis. Acho estranho que as pessoas se assustem quando eu digo isso. Mas está na cara: jovens encontram uma passagem para outro mundo, recebem armas mágicas e são perseguidas pelo bruxo(a)ditador (a) local, auxiliados por uma entidade (Aslam/ Mestre dos Magos) que parece saber de tudo, mas não conta por pura sacanagem.

Todos estes desenhos precederam a literatura no meu caso. Fui ler Tolkien em 1985. Na época, era difícil encontrar livros do sul-africano. Dependia de uma única livraria em Volta Redonda inteira, a Veredas(que existe até hoje). Não havia aquela coisa de pedir pela internet (não havia nem internet, bom deixar claro para a geração de hoje). A Sociedade do Anel foi fácil, agora As Duas Torres foi épico, só achei edição de português lusitano. O que deixou a saga ainda mais com cara de medieval para mim. O Retorno do Rei apareceu um ano depois em “brasileiro”. C.S. Lewis então, fui ler em 2004, quando anunciaram o filme de “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas”.

Como tudo que é feito por seres humanos, a obra de Tolkien não está livre de defeitos. Aquela inocência dos personagens e o discurso fascista de tudo que é belo é bom, são, em minha humilde opinião, perdoáveis e, cá para nós, até desejáveis nessa época em que tudo tem que ser politicamente correto. O que me incomoda pessoalmente sempre foram aqueles capítulos intermináveis narrando montanhas ao longe de manhã, montanhas ao longe à tarde, montanhas ao longe à noite. Por isso pulei de alegria quando, no cinema, tudo aquilo virou um travelling com música alta e um fade. Outro problema corrigido no cinema foi a falta de mulheres ativas na história. Não, não sou daqueles que reclama do relacionamento esquisito de Frodo e Sam, acho até que isso vai depor a favor de Tolkien no futuro, quando, segundo Irvine Welsh, todo mundo vai ser gay. Acho até esquisita a obsessão de algumas pessoas em relação a isso, pois, em Moby Dick, por exemplo, o capitão Ahab tem um menininho ao seu dispor em sua cabine e o próprio Ismael, personagem principal, casa com o índio Queequeg literalmente logo no inicio do livro. Mesmo quando a homossexualidade está sendo amplamente debatida, focam em Sam e Frodo e esquecem de Ismael e Queequeg. Resumo da história, a sexualidade de Frodo e Sam realmente não me preocupa porque não me interessa.

Influência ativa na atualidade

Mesmo 39 anos após sua morte, John Ronald Reuel Tolkien ainda é influência presente nas obras de fantasia no mundo todo. Trata-se daqueles casos em que a influência é tão poderosa a ponto de virar padrão. Mais ainda, a busca por quebrar, superar, ou simplesmente mudar esse padrão virou uma espécie de Santo Graal da literatura fantástica.

Atualmente o marketing de George R. R. Martin no Brasil flerta com a possibilidade do advento de um “Tolkien para adultos” já que há uma maturidade maior na história das Crônicas de Gelo e Fogo. Personagens mais modernos e menos infantis. Se isso se traduz em um autor melhor ou em uma história melhor, é algo muito subjetivo. Mas o fato é que difícil falar de Martin, sem falar de Tolkien. E para falar de Tolkien, não precisamos mencionar ninguém.

Temos também dos ingleses Neil Gailman e China Miéville venerados, tanto pela crítica, quando pelo mercado editorial, por conseguirem romper em parte a fórmula de anões, magos, elfos e cavaleiros. O local de mineração continua sendo lendas antigas europeias (no caso de Miéville há elementos de outras mitologias), mas o resultado é bem criativo e ousado.

Imitadores ruins e o mercado

Há algo intrigante em relação ao mercado mundial literário, que passa por uma fase revolucionária que começou com Harry Potter e continuou com Crepúsculo. Semelhante ao que aconteceu em 1977 com Star Wars onde as crianças deixaram de ser um tempero e passaram a ser o prato principal da indústria cinematográfica, fazer livros para adolescentes virou o foco do mercado editorial.

A qualidade de Harry Potter é debatida por alguns críticos, pode haver um furo aqui e ali, mas o fato é que o bruxinho não pode ser taxado de mal escrito impunemente. Ao contrário, chegou-se a insinuar que J.K. Rowling usava ghost-writers para “terceirizar” as histórias. Um crítico chegou a dizer: “Ninguém faz livros de tanta qualidade em tão pouco tempo”. Pessoalmente, acho Rowling genial. Sabe construir personagens adoráveis com os quais nos identificamos. E ainda teve a sorte de ser transportada para o cinema por cineastas competentes.

Embora não possamos considerar Stephanie Meyer como uma imitadora de Tolkien, ela é uma das locomotivas que puxam essa revolução literária. Crepúsculo já é um livro ruim de defender, com uma autora pertencente a uma religião que defende abertamente que os negros são descendentes de Cain, e gerou filmes de gosto duvidoso, mas ainda há algo carismático na história meio Romeu e Julieta, meio A Bela e a fera. Sua temática machista e moralista encontrou terreno fértil nos EUA de Busch Jr e vem fazendo uma legião de fãs no Brasil aonde a longevidade do governo petista vem fazendo crescer uma consciência reacionária que flerta com o nazismo. Apesar disso tudo, Crepúsculo ainda é legal de assistir (confesso que só li o primeiro livro e não gostei).

O problema maior começa com a falta de qualidade das obras que vem na cola destas locomotivas de olho nesse novo público infanto-juvenil. Porque grande parte dos adolescentes não tem muito critério para ler. O que era uma opção de Tolkien por um clima mais inocente e infantil, virou uma regra para os imitadores.

A busca por uma nova linguagem ou mesmo por novos cenários e novas temáticas, deu lugar para o “mais do mesmo”. Com uma história copiada de Star Wars e um cenário copiado de Tolkien, o Christopher Paolini virou pesadelo de críticos, mas fez a alegria do mercado e virou síntese de imitadores ruins de Tolkien.

O que acontece no Brasil que me deixa preocupado não é a quantidade de imitadores de Tolkien, mas a falta de criatividade, de bagagem literária e personalidade desses imitadores. Como o mercado está próspero, o que acontece é uma profusão de livros com temáticas de idade média europeia sem se dar ao trabalho de fazer uma pesquisa maior sobre o assunto.

O natural seria se voltar para a cultura nacional, mas aí entra o preconceito do brasileiro classe média pela cultura do próprio país. Confesso, por exemplo, que embora seja fanático por futebol, não morro de amores por samba, e Carnaval para mim seja época de viajar e ficar bem longe... do Carnaval. Tudo bem, questão de gosto, mas vejo certos exageros. “O problema dos autores brasileiros é que insistem em querer nos empurrar essas coisas nacionais que não nos interessam”, bradava um imbecil numa comunidade do Orkut anos atrás, como se falar de coisas nacionais fosse como tentar vender uma droga para seu filho.

Claro, durante muitos anos a única referência das lendas nacionais estava atrelada ao – excelente – trabalho de Monteiro Lobato e suas adaptações televisivas para o mundo infantil. O atual guru do Youtube, PC Siqueira, afirmou: “Não vou me assustar com uma história de Saci. Quem vai se assustar com um bichinho que dá nó em rabo de cavalo? Prefiro Zumbis que comem gente e tem a ver com o fim do mundo. Desculpa!”.

Mas vale citar que houve tempos, 13 anos atrás para ser mais preciso, que filmes de heróis da Marvel eram tidos como inadaptáveis para o cinema. Só Batman e Super-homem tinham conseguido espaço nas telas mundiais, enquanto apenas o Hulk havia conseguido algum sucesso e mesmo assim em uma série de TV. A adaptação do Capitão América para a TV não passou de um piloto insosso na Sessão da Tarde.

Com novas tecnologias digitais, os heróis da Marvel tomaram de assalto o cinema de forma devastadora. O que estou querendo dizer é que, se existem barreiras para que se façam boas histórias envolvendo mitologia nacional, elas são tão consistentes quanto a roupa nova do imperador.

André Vianco, atual golden boy da literatura fantástica no Brasil, já utilizou curupiras bombados em seus livros e vendeu muito. Sem falar que trouxe os vampiros para o Brasil de maneira contundente e não houve problema nenhum nisso. Sem pensar muito, o premiado Max Mallman, criou uma lenda própria de imortais que praticam turismo histórico pelo mundo desde a invenção da escrita e acabam vivendo uma aventura no Rio de Janeiro em seu livro Zigurate.

O escritor Roberto Causo também desenvolveu um trabalho semelhante com o ótimo A Sombra dos Homens que não apenas tive a oportunidade de ler, como também presenciei uma avalanche de críticas cujo poder de fogo se concentrava não na qualidade do livro, mas no fato de usar a mitologia nacional como matéria prima para fantasia. Novamente é como se Causo estivesse querendo empurrar goela abaixo do leitor a “malévola droga da cultura nacional”.

Mas o golpe de misericórdia veio com o humilhante tapa na cara dado pelo norte-americano, Christopher Kastensmidt, que, morando em Porto Alegre, usou lendas nacionais, aquelas que não tinham graça para nós, e criou The Elephant and Macaw Banner, uma série de contos que estão ganhando reconhecimento internacional em revistas respeitadas, graças ao óbvio: o folclore brasileiro é riquíssimo para quem tem ambições literárias que vão além de criar uma aventura de RPG.

É importante enfatizar que não acho ruim ou errado um autor brasileiro escrever sobre elfos e anões e outros temas europeus. Primeiro porque nossas raízes históricas são tão europeias quanto africanas e indígenas. Não sou obrigado a escolher apenas uma. Depois porque criatividade precisa de liberdade. O problema é o preconceito, o ódio que alguns leitores e autores parecem sentir pelas temáticas nacionais.

Enfim, ser fã de Tolkien, C.S. Lewis e simpatizantes é quase uma consequência do amor direto pela literatura fantástica, mas na hora de produzir alguma coisa, o escritor nacional deveria pensar em que tipo de reverência pretende render aos seus mestres. Imagine se os Beatles se contentassem em imitar Buddy Holly e não tentassem inventar mais nada?

Alguns tentam “inovar” de forma esquisita. Pegam os mesmos temas de Tolkien e dizem que “beberam das mesmas fontes”. Afinal, não foi Tolkien que inventou os elfos e os orcs. Aí saem coisas esquisitas como elfos peludos que comem banana, orcs louros, vampiros que brilham no sol... Sei lá, não era melhor inventar algo novo ou talvez algo realmente criativo, ou pegar o velho tema e colocar uma boa história pelo menos?

Talvez esse artigo tenha um pouco de dor de cotovelo, afinal, pertenço muito mais ao seguimento de ficção científica, aquele tema que todos adoram ver no cinema, mas pouca gente lê. Mas não consigo ver vantagem em tentar clonar o texto de Tolkien 39 anos após sua morte.

Mas o que defendo é que ousadia e bagagem literária são marcas do bom escritor e vejo pouca coisa disso na fantasia brasileira atualmente. Se a ideia é homenagear mestre Tolkien, acho que o mestre merecia um pouco mais em seu aniversário de 120 anos, concorda?

*Clinton Davisson é jornalista, escritor e presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica e autor da saga Hegemonia onde usa descaradamente fadas taradas, sereias feministas (que subjugam os machos da espécie) e dragões com problemas existenciais, além de uma raça de gambás maconheiros. Por isso todo o texto acima pode ser uma grande hipocrisia... Ou não...