terça-feira, janeiro 29, 2013

50 tons de cinza



A jovem virgem Anastasia Steele quebra um galho para uma amiga de faculdade e vai entrevistar um jovem empresário no lugar dela. Ela não faz curso de jornalismo, mas nos EUA, jornalismo não precisa de diploma universitário, então, qualquer um pode fazer o trabalho. E lá vai Ana com as perguntas na mão sem ter a mínima ideia de quem seja seu entrevistado. Aí aparece Christian Grey, rico, malhado, o mais belo dos belos. Ela faz uma entrevista ridícula, mas o destino dá um jeito dos dois se esbarrarem para, a exemplo de Crepúsculo, ele possa dizer para ela se afastar dele porque ele é “perigoso”. Claro que o cara vai ficar atrás dela o tempo todo só para dizer o quanto é perigoso e ela vai se apaixonar por todo aquele dinheiro, presentes e músculos bem torneados.
Para quem não lembra, eu defendi Crepúsculo anos atrás, apesar de todos os defeitos, relacionei seu sucesso a jornada do herói versão feminina. Onde a princesa encontra o príncipe perfeito e vive feliz para sempre. O absurdo da história é aceitável se a gente levar em conta os mitos masculinos que Arnold Schwarzenegger e Silvester Stallone emplacaram no cinema. Os caras podem bater, ou melhor, matar qualquer um que cruze seu caminho. Trata-se de uma válvula de escape para um mundo onde precisamos ser controlados e educados. Por que as mulheres não podem ter sua própria válvula de escape?
Fora o fator “dança do acasalamento”. Bella e Edward fazem o que qualquer casal apaixonado, adolescente ou não, costuma fazer. São contraditórios. Ele diz a toda hora que não podem ficar juntos, mas não larga do pé dela. Ela sabe que ele é “perigoso” por ser um “vampiro”, mas também não fica longe dele.
Agora, 50 Tons de Cinza, que começou como um fanfic de Crepúsculo, usa a mesma tática. Ele é tudo que uma mulher independente gostaria de ter como válvula de escape. Ou seja, um cara rico, bom de cama, culto, controlador e que gosta dela. Por que? Hora, deve ser cansativo levar vida de mulher independente, eu acho. Provavelmente muito mais dura do que a de um homem. Hoje em dia as mulheres costumam sustentar a casa, cuidar do marido, dos filhos, ser dona de casa e ainda arrumar tempo para estudar. Imaginar um cara rico que possa dar tudo que ela precisa e ainda ser bom de cama é um direito de sonho bem razoável, não acham?
O problema é que o livro é realmente feito para mulheres com a vida sexual muito, muito, muito monótona. Só assim para achar o livro picante. Fico me perguntando, será que os homens modernos são tão ruins de cama assim?
Gostei, entretanto, da tridimensionalidade do personagem principal, Christian Grey, ao menos ele tem uma explicação freudiana para agir do jeito que é. Ao mesmo tempo, o personagem é todo caótico. É rico, ok! Não nasceu rico. Adotado, filho de uma viciada em crack, passou dificuldades na infância. Ficou rico com o próprio esforço antes dos 30 anos. Na verdade tem entre 27 e 28 anos. Como ele arrumou tempo para ficar rico, aprender a pilotar, tocar piano, entender de vinhos, música clássica e literatura? Provavelmente com o dispositivo vira-tempo de Dumbledore.
A personagem Ana Steele é daquelas que você imagina com um corpão de garota do fantástico, mas cabeça de vento. Tudo o que ela faz para encantar Christian Grey é... nada. Ela só é bonita e gostosa. Além de burra o suficiente para não se dar conta disso. Demora a entender as piadas do cara. Demora a entender o que ele quer. Demora a entender tudo. Perto dela, Isabella de Crepúsculo poderia ser astronauta da Nasa.
O que menos gostei do livro foi a desonestidade da autora em relação a personagem principal. Claramente seduzida por toda grana e os presentes de Christian Grey, Anastasia jamais admite isso e apenas se questiona se ele é capaz de amá-la. Em um romance de verdade, isso acontece? Claro, sempre sentimos as dúvidas mais esquisitas e adotamos o comportamento mais incoerente quando estamos apaixonados. Mas no caso aqui, o problema é o exagero. Tudo em relação a riqueza de Christian é descrito com fetichização exacerbada, mas a autora tenta nos convencer que nada disso abala a cabeça da menina. Ela apenas quer ser amada. Lembrei do filme O Diabo Veste Prada onde ocorre uma situação parecida. A personagem de Anne Hathaway acaba sendo seduzida pelo glamour do mundo da moda e é justamente nessa corrosão de caráter que repousa o melhor do filme. O duelo entre o caráter da personagem e a sedução diabólica do mundo da moda. Daí o nome “Diabo” no título do filme, entre outras coisas. Aqui a autora joga isso fora para fazer uma criatura unidimensional e irritante. Ela precisaria de uma atriz muito carismática para defendê-la no cinema porque no livro, você entende claramente por que Christian Grey é fascinado por ela: ela é gostosa, muito gostosa. Mas não entende por que ele simplesmente não se limita a fazer sexo com ela e pronto. Ela é burra, não precisa conversar tanto com ela. Não precisa mandar tantos e-mails. Não precisa nada. Ela já se entregou totalmente e está feliz com os presentes. É só dizer que a ama que ela é idiota suficiente para acreditar.
Na maior parte do tempo, o livro não sai do lugar. O namoro dos dois começa e os dois transam. A primeira cena de sexo é leve e bem escrita, consegue ser excitante sem em nenhum momento parecer vulgar. Mas depois a coisa vai ficando repetitiva. A preocupação excessiva de Christian em não machucar Ana, entra em contraste com o discurso de que gosta de sadomasoquismo. Quando a prometida surra finalmente acontece, é algo tão sem sal que decepciona.
Enfim, 50 Tons de Cinza é um livro fundamental para se entender o mundo pós-feminismo, onde parece que as mulheres cansaram do discurso de independência e demonstram que encontrar alguém que lhes dê segurança financeira e lhes encha de agrados pode não ser o fim do mundo. Embora eu considere um livro bem machista, não é um machismo masculino. Ao contrário, é bem feminino. Lembrando que as pessoas mais machistas que conheci na vida eram mulheres, mas lembrando também que, o feminismo propõe não apenas direitos iguais, mas também que mulheres podem e devem ser seres humanos e, por isso, não precisam ser perfeitas. É na cobrança dessa perfeição que algumas religiões defendem que a mulher deve ter o clitóris extirpado, afinal, já são perfeitas então não precisam de mais esse prazer.
É nesse permitir não ser perfeita que o livro se encaixa. É o direito de descanso, de poder gostar de um canalha, de poder sair da linha, de experimentar coisas novas, nem que seja ler e gostar de um livro tão ruim. Duvido que leitoras de 50 Tons de Cinza vão vender a dignidade em troca de presentes, assim como fãs de Schwarzenegger não saem por aí matando as pessoas. É tudo uma válvula de escape.