quinta-feira, novembro 28, 2019

Diário de um peladeiro XXXV – Diga-me com quem andas e te direi se vai ganhar o jogo


Quem é fã de Stranger Things e/ou da recém versão cinematográfica de IT, vai morrer de inveja, pois aquilo foi minha infância nos anos 80, tirando é claro, os monstros e os palhaços. Éramos um grupo bem unido. Eu, Ricardo de Melo, Christiano, Marcelinho, Ricardo “Sabão”, Alisson (meu irmão), Lenielson, Zé Antônio e, claro, nossa única integrante feminina, Helisiane.
Devo dizer que, apesar do tempo, nós ainda tentamos manter essa ligação e nos sentimos conectados. Mesmo no caso de quem já morreu, como o Marcelinho, eu sempre ia visitar seus pais depois que ele morreu e nossa família mantém contato. Dei o nome do meu filho de Marcelo por homenagem ao Marcelinho. Mas isso já foi contado aqui.
Também já contei que meus dois professores de futebol foram o Ricardo e o Christiano. Dois dos melhores jogadores com quem já tive a honra de jogar. Ambos dois anos mais novos que eu. Ou seja, eu tinha 12 anos e eles 10. Era engraçado.
Mas hoje vamos focar na questão da organização do time infantil do Moinho de Vento. A marcação dos jogos, a “convocação”, a escolha dos adversários que iam lá nos enfrentar, volta e meia caia no colo meu e principalmente do Christiano. Ambos dividíamos a função de jogadores e cartolas e não tínhamos nem 16 anos na época.
Chegamos inclusive a contratar e demitir dois técnicos: o já falecido João, um senhor com uma ampla bagagem futebolística e o Márcio “Caboclo”, que até hoje acho o melhor técnico de futebol que já tive e nunca tive a chance de dizer o quanto ele me ensinou e o quanto sou grato. E dói saber que, com 16 anos, eu “demiti” injustamente da função um cara que tinha 26... Coisas de Clinton... Só rindo, mesmo.
Eu e o Chris tínhamos pensamentos muito diferentes. Acho que por isso dava certo. Vivíamos em atrito, mas era um atrito produtivo e amigável. Confiávamos muito um no outro. Mas na hora de marcar os jogos, sempre discordávamos. Pois, eu acreditava sempre em formar um bom time, chamar caras bons para completar e fazer isso com antecedência. Já o Chris era fã do “na hora a gente resolve”. Não tem frase que me irrita mais do que “na hora a gente resolve”.
Mas não é justo botar a culpa no Chris. Primeiro porque quem tinha o contato dos jogadores era ele. E nos anos 80 não tinha internet e nem celular. Chamar jogadores era um trabalho 99% em cima dele e isso incluía ir durante a semana na casa das pessoas chamar uma criança de 13 anos para jogar futebol e convencer o pai dessa criança a levá-la num clube que ficava a 20km da cidade. E os outros membros do grupo não ajudavam muito. Não era muito justo eu cobrar tanto dele esse trabalho sempre. Mas eu cobrava.
Também tinha o fato dele gostar de ser o protagonista. Ele foi certamente o melhor jogador com quem já joguei. Lembra muito o jeito do Messi jogar hoje em dia e bastante do Maradona e do Zico. Para mim, no fundo, ele achava que resolveria a parada sozinho e o resultado é exatamente o que acontece com a Argentina do Messi. Pois é, não funcionava.
Faltando meia hora para o jogo, eu tinha que ir com o Marcelinho para o meio do mato, na fazenda próxima, procurar por crianças que nunca tinha visto na vida e perguntar se queriam botar uma camisa e jogar futebol para completar o time.
Lembrando também que o Brasil de 30 anos atrás já era habitado por brasileiros. Então, a gente convidava antecipadamente vários garotos da região e, claro, eles não apareciam e a gente tinha que ir na casa deles no meio do mato para lembrar. Eu penso, “que sorte dos garotos do Stranger Things terem só monstros para enfrentar...”.
Mas eu carreguei por anos essa dúvida: é melhor armar um time forte para vencer ou um time fraco para se destacar?
Bom, nesta última terça-feira, quando começou o jogo, vi que o time foi divido entre coletes vermelhos e coletes verdes. O time de vermelho ficou muito mais forte e eu fiquei no time de verde. Logo no primeiro passe que dei, a bola foi para o lugar errado. É uma forma elegante de dizer que errei o passe de forma ridícula. Foi uma sucessão de erros e derrotas. As regras ali são: a duração de cada partida é de sete minutos ou dois gols. Eu saía, esperava sete minutos e entrava. Tomava dois gols em 3 minutos e saía. Comecei a me questionar novamente se não era melhor deixar o futebol para a galera que sabe jogar. Que enxerga direito... Que não tem problemas de coordenação... Blá, blá, blá...
Em determinado momento, esperando meus sete minutos do lado de fora, comecei um diálogo interno. “Por que você está aqui? Não é para combater a ansiedade? Não é para aprender a lidar com a depressão?”. Cheguei à conclusão que tenho que tentar fazer o melhor possível dentro das possibilidades. Fazer o melhor tem a ver também com tentar me divertir e, se possível, aprender alguma lição aqui para levar para a vida, além de suar, dar o sangue ali!
Lembrei que foi assim no jogo do Flamengo contra o River Plate na Libertadores, não foi? Eles viraram o jogo porque acreditaram até o fim. Não seria legal eu tentar botar em prática isso?
Respirei fundo. Faltavam 15 minutos para acabar o jogo. Entrei determinado a correr com nunca, a dividir todas, ganhar todas as jogadas. Enfim, entrei com outra postura! Só que, desta vez, entrei no time de vermelho...
Como estava com a minha sagrada camisa do Flamengo de camelô, não coloquei colete. Vi que alguns do time falaram para colocar o colete vermelho por cima da camisa do Flamengo. Mas ela já era vermelha, é meio tradicional na pelada, quem tá com camisa do Flamengo não precisar usar o colete vermelho. Sempre foi assim nas nossas peladas, ora pois... Não vi motivo para colocar. Ao menos não no começo.
Agora no time mais forte, passei a jogar muito melhor. Fiz o primeiro gol recebendo uma bola na intermediária e tocando rasteiro por baixo do goleiro. Foi um frango. Escutei alguém falar “Pensei que fosse gol contra”. Mas estava tão feliz de fazer um gol com a camisa do Flamengo na semana em que o Flamengo foi Campeão da Libertadores e Campeão Brasileiro que não pensei muito a respeito. O segundo gol foi um chute lindo de fora da área que pegou no ângulo esquerdo do goleiro. Sensação de alegria indescritível.
Comecei a ganhar todas as divididas, driblar todo mundo, tudo que um jogador normal faz e eu não costumava fazer há muito tempo. Mas só quando recebi o terceiro passe de presente de um adversário que o meu próprio time chamou atenção para um fato: a minha camisa do Flamengo, para quem não sabe, é rubro negra, não vermelha, acredita? E naquela iluminação noturna estava sendo confundida e muito com o colete verde. Meu próprio time estava deixando de tocar a bola para mim, confundindo as camisas.
Achei uma coisa muito irônica. Porque tenho problemas de visão, principalmente ao jogar à noite. Por um momento, dei aos meus companheiros de time e adversários um gostinho de como é ser eu. Pois volta e meia erro passes por não enxergar direito...
Mas para não deixar dúvidas e não criar mais problemas, vesti o colete vermelho. Agora, devidamente uniformizado, continuei ganhando todas as divididas, dando bons passes e fiz mais dois gols. Teve um momento em que driblei uns três e fiquei de cara para o gol. Poderia ter até passado a bola, mas estava literalmente de frente para o crime. Chutei, mas a bola não saiu legal e foi para fora. Teve vários momentos que poderia passar a bola e passei. Teve momentos em que poderia passar a bola e chutei para gol. Umas bolas entram, outras não. Sim, é para isso que jogo futebol. Para entender que temos que tomar decisões, arcar com as consequências e assumir as responsabilidades em cima destas decisões.
Reflexões a parte, uma coisa ficou bem clara: eu joguei bem melhor quando joguei no time mais forte.
Não sei se isso representa uma vitória na minha discussão com o Chris. Acho que tudo é relativo. Mas a lição que entendi nesta terça, com meus quatro gols, é que eu na vida sempre tentei me cercar dos melhores e sempre funcionei melhor no futebol, nos relacionamentos, na profissão e, enfim, na vida, quando havia um “time bom” do meu lado e principalmente quando quem estava do meu lado, jogava para mim e não contra mim.
Desculpe o parágrafo de autoajuda que virá a seguir, mas é inevitável e necessário.
O problema não é jogar em time mais forte ou mais fraco. O que houve terça-feira é que, depois que cometi uma série de erros, meu time parou de tocar a bola para mim e aí, o time se tornou mais fraco de verdade. Quando entrei no time de vermelho, entrei com outra postura e comecei a receber bolas boas. Ganhei confiança e comecei a jogar bem. Uma coisa influencia outra. Uma postura firme e positiva costuma gerar respostas firmes e positivas. Não foi culpa do time de verde, mas um processo autodestrutivo e coletivo que praticamente todo mundo está sujeito. Não deveria acontecer, mas acontece. 
Saindo de terça-feira e indo para a vida. Os verdadeiros times ruins são aqueles que a gente mesmo com atitudes firmes e positivas, recebe de volta bolas quadradas. Percebi quantas vezes eu já estive em um time ruim de caráter. De você dar o seu melhor e a pessoa que deveria estar jogando do seu lado, está contra você. Isso é fácil perceber, quantos casais nós já vimos que não perdem a oportunidade de desfilar todos os defeitos um do outro em público? Quantos colegas de trabalho fazem nossa caveira quando damos as costas, às vezes, são pessoas pelas quais você já comprou briga. Pessoas que você defendeu. Pessoas que você pensava que eram do seu time, mas na verdade jogavam contra você.
Então, sim, escolher um time forte para jogar contigo na sua vida, é escolher quem gosta de jogar com você; quem gosta de estar com você; quem gosta de te elogiar, que se preocupa de verdade contigo. Às vezes, temos que trocar mesmo de time, mesmo que o jogador seja uma esposa, um marido, um funcionário, um chefe, ou mesmo um parente.
Então, como fiz quatro gols de novo, agora estou com 38 gols na temporada. Faltam só dois para alcançar o Gabigol. Vou dar o melhor de mim, garanto que vou jogar com toda raça, vontade, respeito e lealdade. Esteja em que time estiver.

Saldo de 2019:
46 jogos
38 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, cineasta e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.

quinta-feira, novembro 21, 2019

Diário de um peladeiro XXXIV – A superstição da camisa de camelô


É engraçado falar de superstições. Porque vivemos numa época em que começaram a desconfiar das pseudociências, como a astrologia, homeopatia, numerologia, mas elas ainda são levadas a sério, muito a sério. Essas crenças esquisitas se refugiam nas lacunas entre ciência e religião. E estas lacunas são tão grandes que cabem teorias absurdas como terraplanismo e criacionismo. Por mais que as pessoas entrem em estado de negação, a astrologia não é menos absurda que o terraplanismo e o criacionismo. Sinto muito, mas é verdade.
Mas o assunto “pseudociências” é um troço complexo. Não podemos chamar astrologia de religião, mas também perdeu o status de ciência, embora eu também não ache justo esquecer que foram os astrólogos que descobriram os planetas mais próximos, Mercúrio, Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, milhares de anos atrás. Religiosos foram os primeiros cientistas, os primeiros filósofos. Na verdade, as fronteiras entre religião, superstição e ciência sempre foram misturadas.
Na Roma antiga era normal você ir se consultar com um especialista em ler a sua sorte nas entranhas de um pombo. Na idade média entrar num barco sem tocar numa ferradura trazia má sorte e podia ser punido com a morte. Sim, muitas superstições se transformaram em leis. Muitas práticas religiosas vieram de superstições e, se parar para pensar, o processo de criação de uma superstição é de observação e constatação. Ou seja, é um elemento embrionário do que viria a ser o método científico.
Só começaram a se desembaraçar o que religião, do que é superstição e do que é ciência há pouco tempo. Estranhamente um marco histórico recente no processo de desatar destes nós foram de mágicos profissionais como Holdini 100 anos atrás e James Randy nos anos de 1970 e 1980. Ambos se especializaram em desmascarar “médiuns”. Holdini, conhecido até hoje como um dos maiores mágicos de todos os tempos, ia nas casas das pessoas para sessões espíritas e usava os conhecimentos como mágico profissional para revelar as artimanhas dos supostos médiuns. Isso valeu uma briga feia com ninguém menos que Sir Arthur Conan Doyle o célebre criador de Sherlock Holmes e que foi um dos grandes propagadores do espiritismo ou espiritualismo na Inglaterra. Desmascarado publicamente e de maneira humilhante por Holdini, Doyle rompeu a grande amizade que tinha com o mágico.
James Randy desmascarou falsos médiuns nos anos 70, principalmente o famoso Uri Geller. Que hoje se diz apenas um bom mágico. Randy também detonou mundialmente a homeopatia com uma ajuda involuntária do Programa Fantástico da Rede Globo.
Não vou entrar no mérito se existem, ou não, médiuns de verdade. Até porque afirmar isso seria muita prepotência da minha parte. Mas que existem médiuns charlatões, isso não se discute.
Enfim, Randy foi um dos responsáveis pelo fim da era dos médiuns charlatões nas tevês americanas e logo depois no Brasil e no resto do mundo. Randy deu um grande impulso no combate às pseudociências e eu sou um grande fã dele.
Dito isso, eu confesso contraditoriamente que ainda sou supersticioso em muitas coisas, sim! Sempre entro em campo com o pé direito, sempre! Sempre que vejo uma mariposa, acho que vai dar azar, enquanto grilos ou gafanhotos sempre associo à sorte. Já tive minha fase de acreditar em astrologia quando era adolescente, hoje não consigo levar isso a sério, afinal, sou cético como todo bom canceriano...
Este ano criei uma superstição esquisita (como se todas as superstições minhas e de todas as pessoas do mundo já não fossem): na última semana de setembro, eu comprei uma camisa do Flamengo no camelô. Afinal, ainda não fiquei rico com cinema. Quando ficar, eu compro uma camisa oficial do Flamengo. Comprei a 14 do Arrascaeta. Tanto porque gosto do jogador, como por ser o número que eu jogava.
Na mesma semana fiz um monte de gol. Saí todo feliz. Mas aí veio o jogo Flamengo x São Paulo. Claro que vesti a camisa no jogo. E o Flamengo empatou com o São Paulo no Maracanã.
Desde então, evito jogar com a camisa do Flamengo antes dos jogos do Flamengo. Vestir a camisa durante o jogo nem pensar. Dá azar para o Flamengo.
Aí, teve um jogo meu, se não me engano, foi 19 de outubro. Só sei que joguei mal pra burro. E estava com a bendita camisa 14 do magnífico Giorgian De Arrascaeta. Logo em seguida teve jogo do Flamengo x Grêmio, dia 23 de outubro. E o resultado foi 5x0.
Pois bem, minha superstição é que se eu jogar mal com a camisa do Flamengo, dou sorte para o Flamengo. Se jogar bem e fizer gols, dou azar.
Para tentar “quebrar a maldição” cheguei a vestir a camisa no dia do jogo Flamengo x Vasco. Mas tirei antes do jogo começar porque fiquei com medo. Mesmo assim, acabou 4x4. Ou seja, superstição confirmada.
Assim sendo, fui - na última terça-feira - jogar com a maldita camisa e sempre repetindo em minha mente: “Clinton, você é um cara do meio acadêmico. Um pesquisador. Em pouco tempo vai ter um doutorado. Como pode acreditar que fazer gols com uma camisa fará com que o universo prejudique o Flamengo?”.
Então foi, desafiando todas as regras, neste ato de rebeldia com o universo, que entrei em campo na terça-feira com a camisa do Flamengo, número 14, do Arrascaeta, comprada no camelô.
Para meu azar e para sorte do Flamengo, eu joguei muito mal. Principalmente na primeira metade do jogo. Basta dizer que perdi todas, TODAS as partidas que disputei. E não foi de propósito, não foi consciente, não foi pelo Flamengo. Parecia que algo me prendia, mesmo. Claro que, jogar mal, não significa correr menos. Mas estava totalmente fora de sintonia. Cometi até um erro primário que foi tentar marcar o goleiro na saída de bola, deixando um atacante livre. Por conta disso, o time adversário fez um gol.
Acho que só nos últimos 20 minutos do jogo, é que respirei fundo e tentei me libertar daquela armadilha de achar que não sou merecedor de estar ali, de que não sou capaz de jogar tão bem quanto os outros e todos aqueles pensamentos negativos com os quais tenho que lidar na vida e no campo.
No final, me libertei disso e comecei a ser mais ousado. Obriguei o goleiro a fazer boas defesas, pelo menos duas vezes. Em determinado momento, peguei a bola e saí driblando, 1, 2, 3, 4 jogadores. Os dribles não foram de graça. Levei muitos pontapés, inclusive resolvi que, a partir de semana que vem, não jogo mais sem caneleira. Enfim, me soltei no jogo, mas já era tarde. Nenhum gol, nenhuma partida vencida. Se depender da superstição, o Flamengo vai ser campeão no sábado com muitos gols. Se isso acontecer, vou fazer até uma campanha com os amigos e leitores do Blog que forem flamenguistas para trocar minha camisa de camelô por uma original. Combinado?

Saldo de 2019:
45 jogos
34 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, cineasta e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.



quarta-feira, novembro 13, 2019

Diário de um peladeiro XXXIII – A águia, a galinha e três gols


Entrevistei Leonardo Boff uma vez em 2004. Muita gente pensa que foi ele que inventou essa história, mas a primeira vez que se falou de uma águia criada como galinha no mundo ocidental foi no início do século XX, através do pesquisador africano, James Emman Kwegyir Aggrey. A história é basicamente sobre um fazendeiro que pegou uma águia ainda filhote e botou no galinheiro. Com o tempo, a águia cresceu e um pesquisador que ficou intrigado com aquele fenômeno. Houve um embate argumentativo entre os dois para resolver se a águia ainda era uma águia, ou se ela tinha se transformado em uma galinha. No fim, o pesquisador convenceu o fazendeiro a soltar a águia e o bicho voou e nunca mais voltou. Afinal, por mais que crescesse entre as galinhas, seu coração era de águia, seu corpo também, sua natureza era de águia.
É uma metáfora da condição humana diante da mediocridade. A águia nasceu para reinar, é a rainha de todas as aves. Não foi feita para ficar num galinheiro ciscando por minhocas e ração. Encaixa com a teoria de Friedrich Nietzsche e seu Übermensch, o super-homem, que foi deturbada para servir base para as ideologias nazistas, mas que, sim, tem um contexto científico forte: o homem é um ser em evolução e em um futuro não muito distante vai ser suplantado por uma espécie superior. Sim, era o que os nazistas pensavam e sim, é o que vai acontecer. O problema é que o nazismo cometeu uma série de erros de interpretação, que embora a irmã de Nietzsche, Elisabeth, detentora da obra do irmão, apoiasse o nazismo de corpo e alma, Friedrich Nietzsche não era santo, mas falava de outra coisa. Falava de um ser moralmente superior, mas no sentido da ética. Com a morte de Deus, deveríamos agora buscar fazer o certo através da ética, porque é a coisa correta a ser feita e não porque estamos sendo julgados por um ser imaginário que nos daria prêmios ou castigos. Para Nietzsche, com a morte de Deus não haveria mais quem culpar, ou a quem recorrer. Cabia ao homem arcar com as consequências e responsabilidades referentes ao bem e ao mal.
Mas sim, Nietzsche pregava que alguns merecem mais que os outros. Que existem realmente na sociedade águias e galinhas. Eu tenho uma visão diferente. Acho que todos nós somos águias para algumas coisas e galinhas para outras. O problema é que está cheio de águia querendo se encaixar no galinheiro e muita galinha tentando voar.
De certa forma, sim, eu sempre me achei uma galinha no futebol tentando jogar com as águias. E se tem uma coisa que aprendi com esse diário é que a decisão já foi tomada. No fundo, eu sempre me recusei a ser uma galinha no futebol. Vou ser águia ou vou morrer tentando. E a coisa vai dando resultado.
Última pelada marquei três gols e ainda perdi um quarto que doeu muito não ter feito. Estou correndo muito, mesmo não tendo ido a academia. Mas volto amanhã com toda força.
O primeiro gol foi com a ponta do pé, desviando o suficiente para enganar o goleiro. O segundo foi um chute rasteiro que passou debaixo do goleiro e o terceiro foi um chute forte de fora da área. Mas corri, driblei, dei bons passes. Mas também errei alguns passes que não podia errar. Estive bem na marcação, fui e voltei no campo com velocidade. O fôlego vai muito bem, obrigado. Está sendo gostoso correr e não cansar. Mas sim, é uma coisa típica minha, ficar choramingando justamente o quarto gol que acabei perdendo. A bola veio em um passe preciso e toquei firme na bola com o lado interno do pé. Sem firula, preciso. Mas a bola foi para fora, apesar do gol vazio. É estranho porque eu fiz tudo certinho e a bola foi para o lado errado. Se tivesse parado a bola e chutado, talvez desse tempo para o goleiro se recuperar. Enfim, coisas do futebol. Em uma semana de grandes decisões na vida, resolvo que essa insistência com o futebol é uma metáfora para algumas decisões que precisavam ser tomadas há muito tempo na vida.
Nessa fábula do James Aggrey, eu sempre imaginei que, se a águia continuasse morando no galinheiro, acabaria morrendo. Talvez até matasse algumas galinhas, devorasse outras, reproduzisse com muitas, mas no final, a águia morreria cedo e morreria infeliz.
Uma águia num galinheiro da vida, pode ser uma criatura extremamente desajeitada, desengonçada e com uma facilidade enorme para irritar as galinhas. Mesmo quando as galinhas querem proteger e até amam a águia, entendo que é difícil manter uma criatura que sempre dá mais despesas do que uma galinha; sempre chama mais atenção; incomoda mais; sempre cria uma expectativa maior. O problema é que, mesmo as galinhas que amam a águia, não entendem que aquela criatura não foi feita para viver em um galinheiro, não foi feita para ter emprego de galinha, para ganhar salário de galinha e definitivamente, não foi feita para se encaixar naquele mundinho medíocre das galinhas. De fato, a águia tem uma natureza que assusta as galinhas, ela exala desprezo pelo galinheiro e quando vê uma galinha, não vê um ser igual, vê uma presa. Porque a águia é um maldito predador. A águia é o Übermensch de Nietzsche. Vi esse olhar de medo no meu primeiro emprego como jornalista quase 20 anos atrás. A editora do jornal quis me mandar embora porque morria de medo de mim. Um mês depois eu peguei o emprego dela. Tinha apenas três meses de formado. Talvez a insistência no futebol tenha a ver com tentar entender também como é ser uma galinha e tentar ter compaixão. Nietzsche não acreditava em compaixão. Talvez ele estivesse com razão de um certo ponto de vista. Compaixão consigo mesmo, é sinal que a águia está abandonando sua própria natureza para se acomodar à vida de galinha. Quando se conforma em não ser mais águia, é sinal que o predador já está morrendo. E isso está fora de questão.
Por essas e outras, talvez a única solução para a águia seja abandonar de vez as galinhas que ama para parar de dar prejuízo a elas. Dar prejuízo para quem te ama também está fora de questão. E como na metáfora de Aggrey e depois imortalizada por Boff, a águia tem que levantar voo e, a partir de janeiro, a águia levanta voo. Talvez esse voo termine com a águia se espatifando no chão, mas é melhor que morrer aos poucos. Enfim, essa decisão está tomada. Já neguei demais minha natureza. Viver como galinha não é vida e a vida é para ser vivida e não suportada.

Saldo de 2019:
44 jogos
34 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor da série de livros Hegemonia, Baluartes e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.

sábado, novembro 09, 2019

Diário de um peladeiro XXXII – Entre O Senhor dos Anéis e a escolha de Matrix


Em O Senhor dos Anéis há uma frase que sempre me faz refletir: “Todo mal caminha para Mordor”. Significa, entre outras coisas, que todos os seres ruins, tem alguma ligação com a terra de Mordor, o local tenebroso onde Sauron, o senhor do mal, forjou o Um Anel, que dá título ao livro. É lá, de Mordor que emana todo o mal e é para lá que tudo que é ruim caminha. Ou seja, quando as coisas começam a dar errado, é sinal que vão continuar dando errado. Não importa o que você faça, todo mal caminha para Mordor.
Uma vez quando eu tinha lá meus 19 anos, eu estava tentando estacionar o carro quando um cara de caminhão chegou bem perto de propósito porque considerava que a vaga era dele. Acabei arranhando levemente a lataria da Christine, era nome que dei para meu lindo Monza vermelho na época. Fiquei pau da vida, não rolou briga porque apareceu um guarda de trânsito na hora H. Já fiquei muito irritado a partir dali. Depois, fui com meu pai buscar um estande para a livraria que a gente tinha na época. Quando voltávamos, um carro bateu por trás com toda a força na bunda da Christine que ficou toda a amassada. O motorista veio com uma conversa mole de “cada um paga o seu”, eu deixei meu pai resolver para não perder a linha com o cara. Fui consolar o filho do cara que devia ter uns oito anos e estava chorando no banco de trás do carro. Acho até que o imbecil do cara achou que eu estava tentando intimidar o menino. Sei lá. Gente burra e covarde tende a achar que todo mundo é burro e covarde.
No final, o cara concordou em pagar e fomos até a casa do sogro dele, que pagou o prejuízo. Mas foram momentos tensos. O cara ainda tentou chamar uns amigos para tentar intimidar. Eu juro que estava com pensamentos de carnificina na hora. Eu detesto gente covarde. Sempre detestei. Acho que burrice e covardia andam juntas. Mas tudo resolvido. Entretanto, foi um dia tenso. Eu praticamente não lembro de outros dias na vida em que tive tanta raiva junta. Pois, tentei engolir o primeiro arranhão no carro, dizendo para mim, mesmo, “deixa disso, calma que a vida vai melhorar”, quando vem um amassado enorme depois. Parece que, quanto está ruim, as coisas só pioram. Parece que todo mal caminha para Mordor.
Estas duas últimas semanas foram assim. Tive uma notícia muito ruim na segunda-feira passada em relação a um projeto que mandei para a Lei Murilo Mendes na Funalfa. Não foi aprovada por um detalhe burocrático que poderia ser facilmente resolvido se eu estivesse atento olhando o bendito site da Funalfa todo santo dia. Mas não olhei. Depois veio notícias ruins sobre o Doutorado. Também problema de falta de atenção. Eu tenho inveja daquelas pessoas que conseguem botar a culpa de tudo nos outros, no governo, nos pais, nos amigos, na sorte... Infelizmente, eu não tenho essa habilidade. E vamos combinar, a culpa nos dois casos foi minha. Claro, tem um desconto da bendita depressão e do maldito estresse pós-traumático que ataca justamente a questão do foco, motivação e da atenção. Mas e aí? Mas e daí? O fato é que vou ter que lidar com isso. Esse é o mundo adulto e, no mundo adulto, todo mal caminha para Mordor.
Dito e feito. Apareceu um trabalho de artes gráficas, mas claro, já passou mais de duas semanas e nada de me pagarem. Tive que pedir dinheiro emprestado para poder deixar os boletos em dia. Se tem uma coisa que equivale a minha Criptonita, é ficar sem receber. É meu calcanhar de Aquiles.
E a cereja do bolo veio com meu tio, irmão do meu pai, que está num estado de saúde muito grave em Volta Redonda. A conexão que eu tenho com este tio e meus primos, filhos dele, é muito grande. Quando pequenos, minha prima morou durante muito tempo com a gente. É o mais próximo que tenho de uma irmã de verdade. Não pude ir lá visitar meu tio. O que me deixou ainda mais frustrado.
(atualização) Meu tio morreu nesta manhã de domingo, 10 de novembro de 2019. 

Enfim, final de outubro e começo de novembro, foi realmente o pior período do ano. Eu literalmente caminhei por Mordor.
O resultado é que nem fui na academia de tão desaminado com esse conjunto da obra. Aí, não teve jeito. A depressão voltou bonita, poderosa, absoluta. Parecia que eu dividia o quarto com um dementador do Harry Potter. Não era só ficar nadando naquela piscina de autopiedade. Era tentar fazer as coisas e simplesmente não conseguir. Mal conseguia sair da cama. A dieta também foi para o espaço. Dane-se. Não conseguia sentir nem raiva.
Nem queria ir no futebol. Mas sei que é a minha principal arma contra depressão. Fiz um esforço. Mas só agora, quatro jogos depois, é que estou tentando retomar o meu diário de peladeiro.
Nestes quatro jogos, só fiz um gol. Acho até que estou jogando bem. Estou correndo, chutando muito, dei chapéu de calcanhar, dei passe de calcanhar, driblei, fiz jogadas muito boas. Claro, que meu joelho inchou e minha coluna deslocou e doeu sem parar por uns três dias seguidos. Afinal, todo mal caminha para Mordor.

Nos dois últimos jogos então a coisa pegou. Deu para sentir a depressão dentro do campo, como os dementadores invadindo o estádio de Quadribol do Harry Potter enquanto ele jogava. Não saiu nenhum gol e hoje, quando terminou o jogo, tive que usar aquela máscara de alegria, contando piadas e fazendo todo mundo rir. Melhor maneira de disfarçar que você está tendo uma crise de ansiedade e está louco para chorar copiosamente. Não por não ter feito gol, ou por ter jogado mal, mas porque a vida é uma bosta, a existência não tem sentido, tudo está dando errado e porque todo mal caminha para Mordor.
Paradoxalmente, sim, o futebol ainda funciona para deixar a depressão menos depressiva. Presumo que se tivesse ficado em casa dando saltos ornamentais na minha piscina de autopiedade, estaria muito pior.
Enfim, juro que, ao começar a escrever este texto, não tinha intenção de deixar uma mensagem positiva. Porque na vida a gente tem que estar preparado para entender que nem todo dia a gente vai ganhar, nem todo dia aquela menina linda que você conheceu vai querer te beijar, nem sempre você vai fazer gol, ou vai ganhar dinheiro, ou vai receber um simples abraço de alguém que você até então confiava muito. Tem dias que a derrota vem e fica, não vai embora. Eu não sou coach, não é este o objetivo aqui. Otimismo, luta e perseverança não garantem absolutamente nada. Como eu disse neste Blog em outro texto, todo cadáver no Everest já foi um dia uma pessoa extremamente motivada e fora da zona de conforto.
Mas aí, sou obrigado a lembrar que teve coisas boas este mês também. Teve a amiga e companheira de aventuras, Gabi Bowen. Sim, ter uma bonitona de 1,80 te dizendo coisas bonitas o tempo todo e como tudo vai dar certo no final, é uma grande arma para destruir os argumentos da depressão. E pela primeira vez no ano, não foi o futebol, nem academia, que me incentivava a continuar lutando, mas o fato de estar fazendo algo em que acredito. No caso, terminando um curta metragem e me preparando para fazer outro. Deste ponto de partida, lembro dos amigos que me ajudaram e ainda ajudam. Lembro da família se desdobrando para me dar condições de luta. Não dá para deixar o desânimo ofuscar essas pessoas.
Isso tudo me leva a outro paradoxo interessante. Por mais que eu esteja abatido, nocauteado pelos ocorridos recentes, me sinto mais otimista. Aliás, há muito tempo que não tenho tanta confiança que as coisas vão dar certo. E isso é muito esquisito já que um monte de coisa está dando muito errado. Mas algo mudou em mim por dentro e acho que este otimismo é irreversível. Não sei explicar o Porquê. O projeto rejeitado pela Funalfa, agora vai para o Catarse e pronto. Vida que segue.
Então, muito a contragosto, a mensagem final deste texto é de otimismo. Sim, as coisas não deram certo, sim, deu tudo errado. Mas aí, eu deixo Mordor e O Senhor dos Anéis para trás e lembro do diálogo final entre Agente Smith e Neo no final de Matrix Revolutions:
“Por que, Sr. Anderson? Por que, por quê? Por que faz isso? Por que se levantar? Por que continuar lutando? Acredita que está lutando por algo mais do que sua sobrevivência? Pode me dizer o quê? Será que sabe? Será por liberdade? Verdade? Talvez paz! Será que é por amor? Ilusões, Sr. Anderson. Defeitos da percepção. Criações temporárias de um fraco intelecto humano tentando desesperadamente justificar uma existência sem sentido ou meta! E todas elas são tão artificiais quanto a própria Matrix. Embora só a mente humana pudesse criar algo tão insosso quanto o amor. Deve ser capaz de enxergar, de saber, a esta altura que não pode vencer! É inútil continuar lutando! Por que, Sr. Anderson? Por que persiste"?
E Thomas Anderson, ou melhor, Neo, responde com a simplicidade inabalável dos heróis: “Porque foi isso que eu escolhi”.



Saldo de 2019:
43 jogos
31 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.