quinta-feira, dezembro 28, 2023

Ciência x Religião – fuja dos mortos da extrema direita, tema os vivos da extrema esquerda.

 

Existem similaridades irônicas entre o meio acadêmico e alguns princípios religiosos. Os evangélicos costumam usam a expressão “do mundo”, tipo, eu sou músico e já toquei música “do mundo” e agora só toco coisas da igreja.

No meio acadêmico também existe isso, só que, nas igrejas gostam de pensar que tem grandes respostas, além da salvação para a humanidade e devem compartilhar isso com o maior número de pessoas possível, incluindo muita cantoria nos ouvidos dos vizinhos, pregações na rua e por aí vai.



Na academia é o contrário, os eventos são para poucos, as respostas sempre questionadas, a divulgação é mínima e a interação e retenção de conhecimento só são rompidas em troca de muito dinheiro.

Os EUA encontraram uma solução bizarra e cômoda: mantém uma população com um nível educacional baixo e ainda difundem culturalmente que educação demais é exagerado, não é de bom tom. Aí, dão bolsas especiais para os gênios de diversos países para que levem suas pesquisas para a terra do Tio Sam. Assim, mantém uma população com um nível cultural que o governo considera mais dócil.

No Brasil é um pouco diferente. Quem se propõe a ser acadêmico tem alguns mimos e ainda tem a possibilidade de flertar com o grande pote de ouro da nossa sociedade há 300 anos que é os benefícios dos concursos públicos. Mas é importante frisar que uma coisa não é exatamente igual a outra. Quem realmente pode passar no concurso público são os concurseiros, um grupo oriundo da classe média alta que pode dedicar de dois a cinco anos de suas vidas para passar em um concurso e continuar fazendo parte da classe média alta.

A sociedade criou uma dependência dos avanços acadêmicos de forma mais efetiva do que um viciado depende de drogas fortes como a cocaína, o crack ou o Rivotril. E a academia ganha suas migalhas da indústria para produzir mais inovações como computadores mais rápidos, celulares melhores, drones, carros elétricos, etc. Mas eu confesso que preferia que essa relação fosse mais parecida com a das igrejas. Queria ver gente pobre lotando auditórios e pagando dízimo por aulas de biologia, física, ainda que aplicadas ao dia a dia. Já que falam tanto em matérias que sejam mais práticas nas rotinas diárias, que tal filosofia com ênfase na ética? Nada mais útil e transformador para a rotina do brasileiro.

Enfim, parafraseamos Carl Sagan que alertava 40 anos atrás que vivemos numa sociedade que é absolutamente dependente de tecnologia onde 90% das pessoas não entende nada de tecnologia.

Nunca um astronauta vai bater na sua porta perguntando se quer conhecer a palavra de Sir Isaac Newton, mas é bom avisar que já é de conhecimento público que os carros elétricos já vêm com aviso de que, quando apresentam defeitos, são jogados fora por falta de mecânicos que entendam aquela tecnologia.

Do outro lado as igrejas fazem parte dessa intrincada conspiração silenciosa, tentando transformar Darwin em uma espécie de demônio e apelidaram a ética de “ideologia”, um novo palavrão o qual não sabem explicar. Nem cogitam que a religião seja uma ideologia. Nos últimos anos flertaram abertamente e promiscuamente com o fascismo se negando a aceitar que o que faziam era fascismo, “apenas somos contra essas ideologias”, afirmam até hoje.

 Tudo isso se torna tão lamentável quanto desnecessário. Igreja, fé, religião não são elementos naturalmente antagônicos à ciência. Ao contrário, é comum que criações tecnológicas recentes sejam usadas rapidamente por religiosos e arrisco dizer: por que não usar esses elementos para combater o estresse, aumentar a interação presencial, a socialização, ou mesmo uma fuga da realidade necessária. Pois como diria a autora americana Shirley Jackson, “Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham. ”

O fato é que o meio acadêmico gosta do isolamento, rejeita os divulgadores científicos porque compactua com a exclusão. E assim caminhamos para uma distopia de um apocalipse zumbi como a série The Walking Dead, onde temos que fugir de zumbis que estão mortos, sem capacidade cognitiva, mas ao mesmo tempo temer os vivos, ávidos por neutralizar ou cancelar quem se atreve a expor questionamentos que fujam aos dogmas preestabelecidos. Enquanto isso, a grama está sempre cortada, as casas estão limpas, a gasolina, a comida e a munição nunca acabam, estamos sempre com roupas boas, os cabelos cortados, a barba aparada. E assim a vida segue, sem saber em qual notícia podemos confiar, mas sem perder a pose porque o Instagram tem que estar sempre com um conteúdo atrativo, não necessariamente verdadeiro.

domingo, outubro 22, 2023

"Simplificando com Marcos Machado: Uma Noite de Stand-Up Promete Agitar o Bairro do Brás, em São Paulo"

Marcos Machado, um comediante de destaque na cena do Stand-Up, tem conquistado o público com seu humor perspicaz e crítico. O jovem de São João de Meriti, aos 29 anos, já acumula 9 anos de experiência e aborda temas que vão desde a infância até questões mais sérias, como religião e desigualdade. Além de sua carreira como comediante, Marcos é também um ator com uma década de atuação em peças populares, incluindo "Sítio do Pica-pau Amarelo" e outros sucessos.

Com um histórico impressionante, Marcos Machado foi finalista em 6 competições de comédia, tendo vencido em 4 delas. Em fevereiro de 2022, ele estreou seu espetáculo solo "Simplificando", que tem sido um sucesso em todo o país. Em aproximadamente um ano, mais de 10 mil pessoas já riram com suas piadas no teatro, e nas redes sociais, seu alcance já atingiu milhões de pessoas.

 O talento de Marcos Machado não passou despercebido por celebridades, com Pedro Cardoso, Tatá Werneck, Ferrugem, Buchecha e Dira Paes elogiando seu trabalho. Pedro Cardoso o chamou de "genial", enquanto Tatá Werneck se declarou sua fã, e Ferrugem afirmou que "passa mal" com suas apresentações.

 Recentemente, Marcos Machado foi convidado pelo projeto "Incluir Direito UFMG" para apresentar um Stand-Up aberto ao público em um evento dedicado à consciência negra. O humorista, conhecido por seu sucesso entre o público jovem, aborda temas sensíveis como racismo, religião e desigualdade em suas apresentações. Ele compartilha experiências pessoais de forma engraçada, abordando questões complexas de maneira ácida e mordaz.

 

E o melhor está por vir! Marcos Machado se apresentará ao vivo em São Paulo no dia 27 de outubro, às 20h, no Point do Jamanta, no Bairro do Bras. Uma oportunidade imperdível para rir e refletir com um dos comediantes mais talentosos do país. Não perca essa chance de vivenciar o humor transformador de Marcos Machado em sua própria cidade!

 

Marcos Machado continua a cativar o público com seu humor inteligente e sua abordagem corajosa de questões sociais e preconceitos. Seu sucesso nos palcos e nas redes sociais é uma prova de que o humor pode ser uma ferramenta poderosa para questionar e desafiar normas sociais, levando as pessoas a refletir sobre o mundo ao seu redor.

 

 

Entrevista:

Como foi a sua infância e como ela te influenciou na comédia?

Minha infância, foi difícil, criança preta de comicidade e financeiramente falando não tínhamos nada, mas também não deixei de ser criança, fiz tudo o que uma criança da minha época tinha pra fazer, sonhadora, sonho de ser jogador de Futebol, mas não tive boas oportunidades, a comedia veio atreves do curso de teatro, foi onde eu conheci o humor, e numa apresentação eu fiz um monologo de comédia, o Stand Up, o vídeo da Matemática hoje é um marco na minha carreira por que de fato tenho dificuldades e resolvi falar sobre nos meus shows onde muita gente se identificou e gerou todo esse transtorno positivo na minha carreira.

 

Você explodiu nas redes sociais com o vídeo sobre matemática, mas isto foi resultado também de um processo. Fale um pouco da sua trajetória?

A internet é isso né, ela te dá toda ferramenta pra você se dar bem e mal ao mesmo tempo, a gente que escolhe o que queremos falar, mas temos as consequências e sim ela ajuda muito no processo de criatividade, me ajudou muito também.

 

Como você recebe este reconhecimento do público?

O reconhecimento do público na primeira vez que subi ao palco, foi uma coisa linda que me ganhou, amor à primeira vista, desde então não parei, os temas que abordo são de fatos temas que vivi na minha vida e a comedia me ajudou a poder falar sobre de forma cômica.

 

Como você começou sua carreira na comédia Stand-Up e o que o inspirou a abordar temas leves e críticos em suas apresentações?

O nome do meu show já fala por si só, eu poderia simplesmente desabafar no palco, mas eu preciso fazer todos rirem, então eu pego os temas e tento deixá-lo o mais leve e simples para que o público entenda o que quero passar e ao mesmo tempo rir da situação, é um público que se identifica comigo, que já viveu de tudo um pouco do que eu falo no show onde gera risadas de identificação.

 

Você aborda questões como racismo e desigualdade em seu Stand-Up. Como você equilibra o humor com a sensibilidade desses tópicos, e qual é a reação do público?

Tudo aconteceu muito rápido com o vídeo da Matemática, muita gente chegando e eu de início não sabia como lidar com tudo até mesmo pessoas querendo contratar o show, mas com estudos e amigos me ajudando fui administrando e entendendo o que estava acontecendo, meu público gosta da minha simplicidade e procuro não perder isso nos conteúdos que crio para eles.

 

Você tem uma presença significativa nas redes sociais, com milhares de seguidores. Como as plataformas online impactaram sua carreira e como você mantém seu conteúdo relevante para seu público?

O teatro me ajudou muito no sentido de encarar o público, sou muito tímido, tinha dificuldades para falar em público e isso eu consegui encarar com as técnicas que aprendi no teatro, e a comedia me deu mais liberdade de criações de personagens para as apresentações teatrais.

 

Sabemos que você tem uma apresentação marcada em São Paulo no Point do Jamanta. O que o público pode esperar dessa apresentação e quais são seus planos futuros na comédia Stand-Up?

Dia 27/10 sexta feira, vai ser um show lindo, com tudo que já passei na comedia SP é um palco onde muitos comediantes querem pisar, o público é cativante, receptivo, vai ser um lindo show. E para o futuro quero poder ter estrutura para rodar com esse show pelo Brasil inteiro e quem sabe uma turnê fora do Brasil.

 

terça-feira, outubro 17, 2023

A Cuca vai pegar!

 Novo romance de Clinton Davisson mergulha no lado sombrio das lendas folclóricas do Brasil


Resenha de Jorge Luiz Calife

 

            Nascido em Volta Redonda, Clinton Davisson é um autor muito versátil. Seu primeiro livro “Fáfia e a Copa do Mundo de 2022” imaginava o futuro do futebol em 1999. No ano de 2007 ele produziu a sua obra mais ambiciosa até então, a space opera “Hegemonia – O herdeiro de Basten”, no cenário de um universo fechado, dentro de uma esfera de Dyson. Paralelamente o autor exerceu uma intensa atividade acadêmica, se tornando mestre em Comunicação pela UFJF e se pós-graduando em cultura africana e indígena pela FeMass de Macaé. Seu novo livro “Baluartes – Terra Sombria” é um resultado dessa experiencia. Trocando o mundo da ficção espacial pela fantasia de terror ele nos leva a acompanhar as aventuras de três jovens, caçadores de fantasmas, que desembarcam no Brasil colonial no distante ano de 1780.

Nossos heróis são o português Luís Monteiro, o príncipe africano Akim Shinedu do reino do Daomé

e a índia Jaciara, única sobrevivente da tribo dos Oitacás. Eles são os baluartes, jovens com poderes especiais convocados pela igreja católica para livrar o mundo das assombrações. E sua primeira missão, num vilarejo de Minas Gerais, é enfrentar ninguém menos do que a Cuca. Aquela bruxa mistura de mulher e jacaré que todos aqueles que já tiveram infância conhecem dos episódios do Sítio do Pica Pau Amarelo. Na verdade, ficamos sabendo que esta criatura tem uma origem europeia, como muitos fantasmas brasileiros, e lá no velho continente é chamada de Coca.

A Cuca é malvada e tem muitos poderes. Uma vez, lá no Sítio, ela bebeu uma poção mágica e se transformou na loira Angélica. Seu objetivo era seduzir o inocente Pedrinho, mas o feitiço não deu certo e ela acabou ficando com o Luciano. No romance do Clinton a Cuca do século dezoito é ainda mais perversa e consegue sequestrar todas as crianças do vilarejo de Ibitipoca. Conseguindo a ajuda dos curupiras, aqueles guardiões da floresta da mitologia indígena. Nosso trio de heróis tenta salvar as crianças e acaba caindo em uma armadilha mortífera. Sim, como diz a música, “A Cuca te pega, e pega daqui e pega de lá.

Essa primeira parte do livro é cheia de detalhes sobre os costumes e a vida no Brasil colônia. Na segunda parte voltamos alguns meses no tempo e estamos na universidade de Pavia, onde o grupo começa a se formar, alguns meses antes de viajar para o Brasil. Viajando para Gênova os nossos heróis salvam a vida do músico Amadeus Mozart e da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, que no futuro se tornará mãe da criadora do Frankenstein. Esses encontros com personagens históricos, como Tiradentes e Napoleão Bonaparte são outro detalhe pitoresco do livro. O grupo vai parar no sinistro castelo de Montaldeo, onde enfrenta um fantasma assassino.

Um dos personagens mais interessantes é a Jaciara, que tem o poder de ver o futuro. Em certo momento ela fala de “um olho que tudo vê” o que me fez lembrar daquele clássico do filme B, “O Homem dos olhos de raios X” com o Ray Milland.

O resultado é uma narrativa que se lê com prazer e quando termina ficamos querendo mais. Quem sabe um confronto com a Mula Sem Cabeça ou o Saci Pererê. Mas é só esperar. Afinal as aventuras dos Baluartes estão apenas começando.

 

Jorge Luiz Calife é jornalista e autor pertencente à vertente ficção científica “hard”, ou seja, com maior rigor científico, detalhamento e pesquisa. Foi Calife quem sugeriu a Arthur C. Clarke uma sequência para 2001: Uma Odisseia no Espaço, inclusive fora creditado por Clarke em 2010: Uma Odisseia no Espaço 2. Trabalhou também como tradutor de obras importantes da ficção científica no Brasil como Duna de Frank Herbert e Eu, robô de Isaac Asimov.

 

segunda-feira, agosto 28, 2023

Precisamos aprender a conviver com a depressão se quisermos vencê-la

 
Esta semana parei para pensar sobre a minha companheira a Senhora Depressão. Pois, apesar de estar vivendo um momento único em termos de produtividade no trabalho, na vida pessoal e na vida artística. Tem coisas que mantém a depressão por perto. A vida não é o nosso Instagram.

Às vezes, os recursos que usamos para nos proteger e sobreviver nos momentos mais difíceis, são equivalentes a adrenalina que nos impede de sentir a plenitude da dor enquanto estamos “quentes”. Quando tudo esfria, sua respiração volta ao normal, você percebe que passou por assédios morais que vão te traumatizar para sempre porque você não reagiu na hora parte para manter o emprego, parte porque não sabia se defender como hoje, parte... bom, parte para não perder a condição de Réu Primário.


Quando tudo esfria, você percebe que foi real que a casa de seus filhos pegou fogo, que não inventou que sua amiga caiu da moto para debaixo de um carro e morreu destroçada. Que ouviu coisas que achou melhor relevar porque ouviu de alguém que você ama.

Um dia você acorda com cicatrizes abertas e entende que vai demorar um tempo para pararem de doer. É neste momento que se torna imprescindível entender que a recuperação é um processo que pode ser lento, mas, convenhamos, desistir não acelera.

A jornada de superação da depressão é uma estrada repleta de desafios, mas aprender a conviver com essa condição é um passo crucial para conquistar uma vida saudável e significativa. A depressão não é apenas uma batalha a ser vencida, mas também um território a ser explorado e compreendido. Ao abraçar essa perspectiva, é possível desenvolver estratégias eficazes para lidar com os altos e baixos emocionais, promovendo uma sensação duradoura de bem-estar mental.
Educar-se sobre a depressão é empoderador. Quanto mais você entende os sintomas, as causas subjacentes e as opções de tratamento, mais capacitado estará para tomar decisões informadas sobre sua saúde mental. Isso também pode ajudar a normalizar sua experiência, ao perceber que você não está sozinho e que muitas outras pessoas enfrentam desafios semelhantes.

Aprender a conviver com a depressão envolve aceitação, autocompaixão e educação. É fundamental aceitar que a depressão é parte da sua experiência, mas não define quem você é como pessoa. Ao invés de lutar contra esses sentimentos, aceite-os como uma parte temporária e tratável da sua vida. Isso permite que você se liberte do estigma associado à depressão e se concentre em explorar maneiras construtivas de lidar com ela.

terça-feira, junho 20, 2023

Resenha de Baluartes: Terra Sombria

Por Lawrence Gonçalves

Riqueza de informações nos primeiros capítulos. Aparentemente desconexas, demandam seguimento para começar a entender porque são informados tantos detalhes.

As descrições de comportamentos humanos em imagens são convincentes, como se dá ao ilustrar gestos comuns, mas ligeiramente específicos. Por exemplo, o contorno de um cumprimento de Jaciara (longa reverência simpática).

 


Entre os baluartes, clássico conflito de crenças recebe tratamento conciliador em diálogo dentro de uma igreja. Um tanto quanto generosa a providência do autor para explanar a dissolução dessas contradições humanas. Mas, por fim, convence rapidamente, ao equalizar tal simplicidade com saberes pouco triviais que se põem ao conhecimento do leitor. Aliás, outra característica que se observa ao longo da construção é a disposição para o azeitamento das diferenças, num esforço para viabilizar a coesão do grupo de personagens.

 

‘Lembranças’, um dos primeiros capítulos, tem função de revelações. Interessante e cuidadoso, o excerto anuncia sentidos importantes para atiçar o interesse em seguir adiante. Este capítulo tem característica acentuada que também se encontra nos demais, - arremata-se em si mesmo, o que parece ser aspecto contínuo na construção do livro: cada capítulo assemelha-se a um episódio de novela televisiva. Em ‘Lembranças’, há espaço para reminiscências de mais velhos que, como eu, assistiu Sítio do Pica-Pau amarelo e conheceu muito bem a Cuca (Coca, de agora em diante). Ou achava que conhecia. Insinuava-se suficiente, até então, a imaginação de Monteiro Lobato.

 

Diante de ‘A volta dos que não foram’, supõe-se que será enaltecido o teor sombrio da história. No entanto, trata-se de um recurso mnemônico do autor a par de suas vocações temáticas. De fato, o curto capítulo traz boas novas, enquanto ao final outro integrante do folclore nacional integra o enredo de forma assustadora. O ponto alto do sombrio, no entanto, parece concentrar-se no último quadro da trama, em típico cenário de castelo mal-assombrado. De qualquer forma, com perfis menos triviais, Coca, Sacis e Curupiras já preparam o leitor para a atmosfera lúgubre da história, o que imprime à Baluartes sua classificação indicativa básica.

Personagens do folclore nacional recebem projeção sombria e respeitosa no correr da história. Talvez essa reverência associe-se à projeção de Clinton Davisson atualmente. Retomado o olhar para o Brasil, a reconhecida vocação para a valorização das riquezas nacionais personifica a condução do país em 2023. Neste caso, alcançam-se raízes folclóricas e talentos modernos, como o autor, que adiciona ao lúdico e fantástico um aspecto de rigor acadêmico na descrição de fatos e boatos ao longo do enredo.

 

Com o mesmo rigor se estende a abordagem de personagens históricos, estrangeiros ou nacionais. Para não demorar-se muito, basta dizer o quanto é inusitado encontrar Mozart em meio a flechas mágicas, índios canibais e reinados africanos. Adicione-se, sem prenúncio das surpresas que a leitura traz, o trabalhoso tour por épocas históricas contíguas e dimensões paralelas.

Embora os capítulos apresentem uma boa cadência e conclusões provisórias, a obra sustenta pontas soltas. Baluartes tem densidade para seguir. Hoje um desafio maior, visto a limitada prontidão para bullet points, o acompanhamento dos personagens, seus assuntos a serem resolvidos e os propósitos de sua irmandade esotérica promete reavivar uma disposição para expectativas. De fato, apenas assim seria saciado o desejo criado neste primeiro volume. Lugar já menos comum, a leitura de Baluartes põe-nos como que diante da TV, esperando os próximos capítulos da novela. Parabéns, Clinton Davisson!

 

 

Att, Lawrence

segunda-feira, março 13, 2023

Apesar de cansativo, Tudo em todo lugar ao mesmo Tempo explica o mundo polarizado em que vivemos e propõe soluções

Sobre o fato de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo ter levado a estatueta de melhor filme, eu posso dizer que se trata de um filme sobre a guerra entre as três gerações: os Baby boomers nascidos dos anos 40 aos 60, a Geração X, nascida dos anos 60 ao final dos 70, e os mileniais do final dos anos 80 para cá. Talvez isso explique o sucesso da produção dos “Daniels”.

Classificado naquela lista de filmes “ame ou odeie”, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, não conseguiu nem meu amor e nem meu ódio.
Como pai de mileniais, acho muito útil. Como comédia, dei ótimas risadas. Como fã da série Ricky & Morty, sei que já vi coisa muito mais inteligente e engraçada sobre o mesmo assunto. Mas como fã de boas atuações, aí fiquei feliz, porque o diferencial do filme é que temos bons atores que dão peso e credibilidade à trama. Ke Huy Quan dá um show mudando constantemente de personalidade, de tímido, para confiante e até para um galã, tudo isso num picar de olhos, sem que a gente duvide disso. Não vemos Ke Huy Quan, atuando, vemos várias pessoas dentro de um corpo. Isso bastaria para pagar o ingresso.
Já Jamie Lee Curtis está hilária, em uma hora ela é literalmente um monstro, na outra vira interesse amoroso de outro universo.
As homenagens a Matrix, Ratatouille e, claro, a Ricky & Morty não são nada sutis. E o filme fica se explicando a cada 15 minutos para não correr o risco de não ser entendido pela galera que está acostumada a ir ao Youtube para entender o final de filmes... da Marvel...
Mas é como serviço de utilidade pública que o filme se justifica, mostrando o conflito de três gerações. Trata-se de algo que é totalmente antenado com que acontece nesta realidade polarizada em que vivemos. Afinal, Michelle Yeoh é uma mãe de meia idade que tem que lidar com o marido sem sal, o pai que a considera um fracasso e a filha que é uma milenial que se sente incompreendida (pleonasmo, todo milenial se sente incompreendido e acha o esforço para compreender alguma coisa algo extremamente doloroso). Ela tem que fazer a ponte entre a geração do pai, que representa os conceitos e preconceitos preguiçosos do século XX, que não consegue entender nem de perto coisas óbvias (do tipo racismo e homofobia são coisas erradas), e a filha com toda a intolerância que os nascidos no século XXI tem com a geração anterior (para os mileniais, o mundo começou neste século e tudo que existia antes era errado e indigno de esforço para ser entendido, com isso, eles justificam um sentimento de eterno e contínuo cancelamento).
Michelle Yeoh representa a azarada geração X, que nasceu entre os anos 60 e 70, que consegue entender (não exatamente concordar, apenas entender de leve) tanto a geração anterior, quanto a posterior e, por isso, é odiada por ambos. Afinal, não vai cancelar os velhos como querem os jovens e nem cancelar os jovens como querem os velhos.
Neste ponto, sim, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo tem muito a dizer, tem muito a ser entendido. Não se deixe intimidar pela trama aparentemente complicada pois, como eu já disse, o filme para e se explica a cada 15 minutos. É basicamente uma mãe recrutada por pessoas que têm acesso a um multiverso para impedir que um ser poderoso e rancoroso destrua todos os universos. Esse ser maligno, é claro, é uma versão de sua filha, ou seja, uma milenial que quer acabar com tudo porque acha que isso é mais fácil do que tentar entender o mundo, entender a mãe, entender o avô.
Do outro lado está uma versão do avô que acha que precisa matar a milenial porque, afinal, não tem capacidade para entende-la. Retrato mais fiel do mundo de hoje não há. Por isso levou o Oscar.
Enfim, se você tem filhos que nasceram da década de 90 para cá, principalmente se nasceram neste século, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo é obrigatório, mesmo que você ache chato. É um manual de instruções sobre como lidar com mileniais. E acredite, nunca houve uma geração mais complicada de se lidar. Seja um bom pai, seja uma boa mãe e assista, uma, duas, três, quantas vezes for necessário. Não quer dizer que seja um filme bom, não quer dizer que seja ruim. Você não precisa gostar, eu mesmo acho que não gostei. Mas é um filme necessário.

domingo, julho 31, 2022

O recorde do Fliperama e aquele rapaz idiota que apareceu (e sempre aparece)

 

Estava jogando fliperama. Era a primeira metade da década de 80 e fliperamas não ficavam em shoppings, até porque Shoppings não existiam no Brasil fora das capitais e eu estava numa cidade pequena, do interior de Minas Gerais.

Eu devia ser tão novo que minha mãe estava comigo no bendito Fliperama. Sabe o que é engraçado? Eu não tenho certeza se estava jogando Donkey Kong ou Pac Man. Só sei que naquele dia minha mãe comprou muitas fichas, porque era mais barato naquela cidade pequena.

E aí, de tanto jogar, finalmente, pela primeira vez na vida, deixei meu recorde naquela tela de maiores pontuadores. O problema é que não vi isso. Terminei de jogar e dei as costas para a máquina. E falei para minha mãe que já deu. Que queria ir embora.

— Olha lá, Tato! – apontou minha mãe.

Eu já estava na porta do Fliperama quando ela me mostrou que eu tinha colocado um recorde na máquina. Voltei correndo e fui lá tentar descobrir como escrevia meu nome ou minhas iniciais naquela tela enquanto minha mãe comemorava.

Assim que terminei, apareceu um cara surgindo de nada. Faz tanto tempo, mas tanto tempo, que não lembro que idade ele tinha, não lembro se era negro, branco, alto, baixo, magro ou gordo, e quando tento imaginar o rosto dele, lembro no mendigo do filme Cidade dos Sonhos. Com certeza era apenas um garoto, provavelmente bem-vestido, nada a ver com aquele mendigo medonho do filme que vi mais de 20 anos depois no cinema. Mas é assim que minha memória gravou. Talvez porque ele tinha a voz grossa. Não era a de um garoto, mas eu tinha o que? 10? 14 anos? Mas isso não importa, o que importa é o que ele disse:

— Você gosta de colocar seu nome nos recordes, né? – Havia um sarcasmo tão palpável na voz dele, que eu poderia sentir aquilo me abrando, podia sentir o cheio azedo do sarcasmo.

Aí, o cara foi falar com o rapaz que vendia as fichas. Falou com todos que estavam jogando. Só faltou subir na mesa e gritar:

— Ele tá colocando o nome dele no jogo! Não pode!

Eu já estava saindo, minha mãe já estava saindo. Não sei se ela ouviu, mas fomos embora e deixamos o homem reclamando.

Eu entendi na mesma hora, com entendo até hoje. Ele chegou e não me viu jogando. Chegou depois. Ou estava jogando outra coisa. Tudo o que ele viu foi eu vir da ponta do fliperama e colocar meu nome ali no recorde, como se tivesse trapaceado. Para ele, eu estava enganando todo mundo, inclusive a minha mãe.

Aquilo me deixou chateado. Tanto que voltei outros dias lá e joguei até encontrar o cara e fazer novamente o recorde na frente dele, para ele ver que eu não estava mentindo.

— Agora você fez o recorde – disse o mendigo monstro da Cidade dos Sonhos. – Sem jamais admitir que aquele recorde naquele dia era meu.

Eu penso nisso porque aquele foi só o início de uma série de situações em que pessoas desconfiaram, duvidaram e até afirmaram que eu não tinha capacidade, que eu não merecia alguma coisa.

Com o tempo, eu vi que não era só comigo. Que todo mundo já passou por uma situação parecida em que um desavisado resolve que você é ladrão, trapaceiro, corrupto, desonesto, fraco, incompetente, tudo isso baseado em uma observação rasa. Todo mundo já foi julgado dessa forma. E acho que é por isso que eu não lembro o rosto do rapaz. Porque aquilo se tornou para mim uma soma de várias pessoas, um Frankenstein de rostos colados ou sobrepostos. Para quem não sabe, o mendigo monstro de Cidade dos Sonhos é a própria protagonista, ou melhor, a atriz Naomi Watts, coberta de maquiagem de mendigo. Assim como ele representa as minhas dúvidas, meus receios, minhas inseguranças, tanto quanto representa todas as pessoas idiotas que me julgaram de uma forma errada e continuam julgando, julgando e julgando.

Mas assim é a vida. Um movimento constante de ter que provar o seu valor para o mundo, provar que merece estar nele. Provar para pessoas que talvez nem seja más, burras, ou idiotas, elas são apenas um reflexo dos horrores que habitam dentro de nós.