sábado, agosto 31, 2019

Diário de um peladeiro XXIV – Despedida temporária dramática

Era uma vez um garoto que não gostava de futebol, mas foi obrigado a aprender a jogar para se socializar. Naturalmente, o garoto se apaixonou pela bola ainda que tardiamente. Talvez por essa paixão ter sido tardia, às vezes, tenho a impressão de que nem sempre ela é correspondida. Mas o fato é que foi jogando bola que descobri coisas como amizade, companheirismo, trabalho em equipe... Acho que descobri quem eu realmente era. Descobri a mim mesmo.

Eu tinha 12 anos e quem me ensinou foi um moleque de 10. Sim, um garoto que usava uma bermuda muito engraçada, feita pela mãe. Parecia a roupa do Chaves. Mas ele fazia igual a um treinador de verdade. Me ensinava a chutar com toda a paciência do mundo. Eu chutava, errava o gol, isolava a bola e ele mantinha a calma e dizia: “Tudo bem, eu vou buscar a bola, fica calmo e tenta de novo”. E o cara era meu professor mesmo, me ensinou a matar no peito, a cabecear... Aprendi muito com ele. Mas tinha um outro, um lourinho encapetado que jogava muito, mas muito, mesmo.

Este, porém, vivia brigando comigo, me provocando porque eu era mais velho e era um perna de pau. E quando digo brigando, falo nas vias de fato. Socos e pontapés. Uma vez peguei ele no colo e arremessei longe de tanta raiva. Assim, eu ficava lá: o aprendiz de 12 anos de dois moleques de 10. Deu certo. Aprendi, eu acho.

Entre uma briga e outra, o louro encapetado foi se tornando meu amigo também. Foi uma coisa estranha porque ele me chamou para sair, fiquei tão desconfiado que cheguei meia hora atrasado e lá estava ele esperando. Fomos ao cinema, viramos amigos. Na verdade, até hoje, esses dois são meus dois melhores amigos neste mundo.

Os anos se passaram e ele fez 14 anos e foi fazer teste em São Januário no poderoso Vasco da Gama. Era certo que entraria. Ele era muito bom. Sempre achei que ele acabaria na Seleção. Me chamou para fazer companhia. Fomos eu, ele e o pai dele de carro para São Januário. Lembro que no carro tocava uma fita do Engenheiros do Hawaii, acho que escutamos a música “Tribos e Tribunais” umas dez vezes entre Volta Redonda e o Rio de Janeiro.

Chegando lá, o pai dele cismou que eu também deveria fazer o teste. Falei que não levei chuteira. Um cara arrumou para mim. Entrei num ônibus e fomos para um lugar ali próximo. Acho que era o campo do São Cristóvão. Um campo de terra, sem um tufo sequer de grama. Sem grama e sem responsabilidade, eu joguei leve, feliz. Corri o campo todo e num escanteio fiz um gol de cabeça.

No final, saí contente. Fui perguntar para meu amigo como foi. Ele não tinha passado. Mas conseguiu agendar um outro teste para a próxima semana. Mesmo assim, mesmo tentando disfarçar, vi que ele estava chorando. Aquilo era realmente importante para ele.

Quando fui devolver as chuteiras, o técnico me chamou. “Você aí, grandão. Fica aí. Fala com teu pai que você vai ficar”. Entendi que eu, o perna de pau, tinha passado na peneira do Vasco da Gama. Logo eu, que no começo odiava futebol, que comecei a jogar com 12 anos. O cara ainda emendou: “Golaço de cabeça! Tu tem raça e sabe se posicionar na defesa”.

Eu falei que não fui eu quem fez o gol. Eu não sei quem era o tal técnico. Nunca mais vi. Mas ele era esperto. Ele entendeu. “Eu vim só para acompanhar”, falei baixinho para que o meu amigo não percebesse. Ser jogador de futebol era o sonho dele, não o meu. Ao menos não naquela época. Naquela época eu tinha a ingênua ilusão que estudar no Brasil me levaria a algum lugar. “Você é amigo, mesmo”, disse o técnico. “Mas pensa direito. Qualquer coisa, volta semana que vem”. Nunca mais voltei.

Quando o amigo veio e perguntou o que houve, eu disse que o cara ficou puto que estraguei a chuteira... Ele não falou nada. Nunca perguntei depois se ele acreditou na mentira ou não.

Pois é... Deixando para trás a década de 80 e voltamos à pelada de hoje, sábado, último dia de agosto, de 2019, foi para fazer uma despedida decente. Vou ficar apenas um mês sem jogar futebol. Ficarei tomando anti-inflamatório e tentarei não engordar. Mas a última pelada foi tão ruim que resolvi transformá-la em penúltima. Assim sendo, resolvi fazer um jogo de despedida que fosse decente. E foi!

Continuo correndo bem. Fiz boas jogadas. Teve um momento que entendi que não dava para ficar indo e voltando na defesa e para o ataque, então revezava. Hora ficava na frente, hora defendia. O gol foi o famoso gol de videogame com uma boa troca de passes iniciada pelo meu eterno garçon, Bruno Kaehler. Só tive o trabalho de tocar para a rede. Ainda chutei duas vezes, mas o goleiro defendeu. Numa delas, dei um corte seco para dentro, limpei e chutei. Se tivesse mais um segundo para mirar, teria sido gol.

Claro que nunca mais vou ter 16 anos. Mas me pergunto o quanto posso melhorar, me aproximar do sol e sair da sombra daquele meu eu do passado, que jogava com a camisa 14 do Moinho de Vento?

Porque às vezes, fica claro que há um abismo entre o Tato que parou de jogar em 2003 com o Clinton que voltou aos “gramados” em 2015. Não que eu chegasse a ser um grande craque, mas tinha meus dias... Ninguém aliás, me chama mais de Tato, agora é só Clinton.

A pergunta se responde quando a gente joga novamente com a metáfora: futebol x vida. Às vezes, penso que tudo que aconteceu nos últimos anos, tantas cosias ruins que não valem a pena serem postadas. Na verdade, o segredo é justamente esquecer as coisas ruins. Esquecer as bolas na trave da vida e lembrar dos golaços. Mesmo aqueles que a gente teve que dizer que não fez porque era a atitude mais correta naquele dia. Em outras situações, enfrentamos pessoas que que insistem em dizer que não fizemos gol algum, ou que o gol não valeu. E tem uma situação ainda mais crítica: quando as pessoas que não querem nos dar crédito somos nós mesmos. Assim, quando paramos de dar crédito às nossas próprias vitórias, de certa forma, paramos também de viver.

Na metáfora futebol x vida, entendo que o meu gol mais bonito não foi um que não esquecerei nunca, com 14 anos, no campo do lago, driblando todo o time do Flamengo, inclusive o goleiro. Era o “Flamenguinho de Barra Mansa”, mas não interessa. Driblei o time inteiro, foi tão bonito que meu pai invadiu o campo para me abraçar. Nem aquela bola no ângulo no treino do Voltaço. Muito menos aquele gol afirmei não ter feito em São Januário. O gol mais bonito foram três. Uma menininha de olhos muito claros que me olhou pela primeira vez nos braços da enfermeira em 1992. Parecia um sorvetinho e que hoje é uma bela psicóloga trabalhando em São Paulo. E dois meninos que nasceram juntos em 2007. Nasceram lindos como a mãe, mas muito doentes, a enfermeira os chamava de “bebês graves” e que tive que esperar um mês para poder abraçá-los. Hoje sinto os três longe de mim tanto fisicamente quanto fraternalmente. E isso acontece há tanto tempo que sinto que estou perdendo a autoria deles. Sinto que estou perdendo o direito de me dizer pai destas três pessoas. Com eles, percebo que também perco a mim, mesmo. Deixo de ser o Tato, deixo de ser o Clinton e me transformo em alguém que não é nada.

 Às vezes, os gols mais bonitos são aqueles que comemoramos sozinhos, sem alarde, em silêncio e de longe. Costuma-se dizer que, quando criança, choramos bem alto para chamar a atenção. Na vida adulta aprendemos a chorar em silêncio, à noite, no escuro, não por gols perdidos, mas com saudade dos golaços que já fizemos e mantemos a esperança de que voltem a fazer parte da nossa vida.

Talvez essa seja a grande motivação em relação ao futebol: uma necessidade intrínseca de novamente encontrar a mim mesmo dentro do gramado. Foi lá que me encontrei da primeira vez. Talvez eu ainda esteja ali. Quem sabe?

 

Saldo de 2019:

30 jogos

21 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor de quatro livros, sendo um deles “Fáfia – A Copa do Mundo de 2022”, que será relançado este ano.

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