Acabei de ver Cobra Kai, continuação direta da trilogia
Karatê Kid do recém-falecido diretor, John G. Avildsen. Vi o primeiro filme no
cinema em 1984. A produção fez sucesso nos EUA, mas passou batida no Brasil por
causa do título “A Hora da Verdade”. Não, não tinha “Karatê Kid” no título
nacional do primeiro filme nos cinemas.
O sucesso no Brasil só veio quando passou na Rede Globo em
um domingo. Aí sim, alguém teve a lucidez de colocar o título original antes do
nacional. Aí, ficou “Karatê Kid – A Hora da Verdade”.
Quando estreou “Karatê Kid 2 – A hora da verdade continua”, faturou
alto nos cinemas nacionais também. Com direito ao sucesso da música de Peter
Cetera, Glory of Love que chegou a ser indica ao Oscar.
A saga fechou com “Karatê Kid 3 – O Desafio Final”, que foi
o mais fraco dos filmes. Com uma história bem surreal e situações de luta que
expuseram ainda mais o problema crônico é que Pat Morita nunca ter sido um bom
lutador. O filme afundou nas bilheterias e teve péssimas avaliações da crítica.
Depois tentaram ressuscitar a série com um Karatê Kid 4 com
a futura oscarizada, Hilary Swank, e fizeram um filme muito, mas muito ruim. Aí
veio a ótima refilmagem produzida por Will Smith com seu filho, Jaden Smith,
como o jovem que sofre Bullying e Jackie Chan como o mentor. O cenário foi
transportado para a China e o filme fez sucesso, mesmo sem o charme do
original, mas com personalidade própria.
Agora, é o próprio Will Smith quem também produz, ao lado de
Ralph Macchio, esta série que continua diretamente a saga original.
Para quem não sabe, os filmes originais acompanhavam a vida
do franzino Daniel Larusso (Ralph Macchio), criado com muita dificuldade pela
mãe, Lucille (Randee Heller) - o pai morreu quando ele tinha apenas oito anos. O
menino sofre bullyng dos valentões riquinhos da escola porque se envolveu com Ali
(Elisabeth Shue) ex-namorada do macho alpha do pedaço, Johnny Lawrence (William
Zabka).
A tensão entre o garoto franzino de origem humilde contra os
valentões ricos da escola encontra um elemento chave quando o Sr. Miyagi, (Pat
Morita que foi indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel) zelador
do prédio onde Daniel mora com a mãe, se mostra um grande mestre de artes
marciais e resolve treiná-lo para enfrentar os valentões, ou o bullying como se
diz hoje. O final é arrebatador quando Daniel participa de um torneio de Karatê
e vence. Descobrimos que o grande vilão não é Lawrence, mas o seu mestre, Kreese
(Martin Kove) dono de uma escola de Karatê chamada Cobra Kai.
Jonny reconhece a coragem e a determinação de Daniel.
Vamos lembrar que John G. Avildsen já havia ganhado o
Oscar de melhor diretor por Rocky – O Lutador em 1977 e sabia como ninguém
filmar dramas de superação através da luta.
Curiosidade pessoal
Quando escrevi meu primeiro romance, Fáfia – A Copa do
Mundo de 2022, entre 1993 e 1995 (lancei em 1999) cheguei a escrever duas
linhas brincando com uma possível continuação onde Daniel LaRusso se tornava
mestre. Um personagem assistia televisão quando via um comercial de um filme: “Aos
Sessenta anos, ele resolve ajudar um rapaz frágil e problemático nas milenares
técnicas do Karatê! Ralf Macchio, ele agora é o mestre em KARATÊ OLD - PARTE
X!”
Bom, minha profecia se concretizou parcialmente com Cobra
Kai. O plot da série é muito melhor que o do filme que imaginei 25 anos atrás.
A história
Cobra Kai mostra a vida e redenção de Johnny Lawrence 34
anos depois da derrota no torneio. Temos a impressão que ele não se recuperou
até hoje do chute na cara que levou do Daniel. Trata-se de um homem destruído
pelo alcoolismo. Fracassado como pai e profissionalmente falido. O sucesso de
Daniel LaRusso em comerciais de tevê, como empresário, só parecem aumentar seu
sofrimento e sua sensação de fracasso.
A princípio é difícil enxergar o Johnny do final do
primeiro filme como um derrotado. Ele aprendeu a lição e vemos que ele pega o
troféu e entrega a Daniel. Mas parando para pensar dois minutos e lembro de
muitos amigos e parentes que sucumbiram ao alcoolismo por conta de golpes duros
na vida, Johnny perdeu a mãe e é obrigado a conviver com o padrasto idiota.
Conheço pessoalmente gente que morreu por conta de alcoolismo.
De certa forma, Johnny Lawrence segue um caminho parecido
com o Sr. Miyagi, que, no primeiro filme, também usa o álcool para tentar anestesiar
as dores do passado envolvendo a perda de entes queridos.
E é salvando um garoto franzino, Miguel (Xolo Maridueña),
de um grupo de valentões da escola que Johnny começa sua escalada rumo à
redenção.
Ele reabre a escola Cobra Kai e começa inicialmente a
treinar o jovem Miguel que é imigrante equatoriano. Logo vários nerds e “perdedores”
da escola se juntam ao grupo de alunos do Cobra Kai. O mais fascinante é como o
discurso de “Ataque primeiro”, “Não existe dor neste dojo” e “Não tenha piedade”
se ajusta perfeitamente a discussão contemporânea da geração mimimi.
Neste ponto, o roteiro é extremamente inteligente ao
lançar ao ar a discussão sem realmente abraçar um lado. Vemos a filosofia de
Johnny dando resultados, como Eli (ótima presença de Jacob Bertrand) um jovem
traumatizado com as cicatrizes deixadas por uma cirurgia de correção de lábio
leporino. Johnny não tem nada de politicamente correto e ensina o jovem a
enfrentar a vida agressivamente. O garoto sai, faz um cabelo moicano chamativo e
uma tatuagem enorme de falcão nas costas. Depois disso, supera o trauma da cicatriz
e arruma até namorada.
Cobra Kai seria uma série bem ao gosto da geração
bolsominion se o roteiro não tivesse um contraponto. E é exatamente Daniel
LaRusso, agora um bem sucedido empresário com uma franquia de venda de carros.
Ele também tem que se virar na luta para ser um bom pai, bom marido e ainda
enfrentar a concorrência agressiva.
Ao se deparar com o retorno de Johnny, do Cobra Kay, de
descobrir que agora é pai de uma bela adolescente já com o primeiro namorado e
dos problemas da vida empresarial, Daniel também começa a assumir uma postura
agressiva.
Alertado pela esposa, Amanda (Courtney Henggeler com boa
presença) seu comportamento, Daniel volta a treinar Karatê e arruma um pupilo.
Não exatamente um jovem frágil e desprotegido, mas justamente Robby Keene (Tanner
Buchanan), ninguém menos que o confuso, rebelde e frustrado filho de Johnny
Lawrence, que, decepcionado com o pai, resolve provocá-lo indo trabalhar
justamente com seu grande rival. Não, Daniel não sabe que Robby é o filho de
Johnny e sim, a série usa vários destes artifícios novelescos, mas aqui até que
funcionam e funcionam bem. A filha de Daniel, por exemplo, Samantha LaRusso (Mary
Mouser), vai acabar namorando justamente o aprendiz de Lawrence, Miguel. E tudo
vai ser resolvido novamente no mesmo torneio, que aliás, não mudou a arte
gráfica e nada da sua identidade visual mesmo depois de 34 anos.
Mas estes “defeitos” acabam deixando a história ainda
mais deliciosa. Johnny e Daniel são dois lados de se encarar o Karatê e a vida.
Um mais agressivo, outro mais poético. Ambos os lados parecem caminhar para um
equilíbrio. Johnny vai tendo seu arco de crescimento e aprendendo tanto quanto
ensina aos seus alunos. Já Daniel percebe que sua vida não é tão perfeita como
pensava e por momentos ele quase vira o antagonista da série. Só isso já valeria
a pena assistir Cobra Kai.
Mas há também vários outros pontos positivos como as
referências, às vezes forçadas, mas sempre hilárias aos anos 80 e 90, como
Johnny ainda ter o mesmo carro e às vezes usar até algumas roupas velhas da
época do primeiro filme. Ele também afirma não saber o que é Facebook e se
irritar ao descobrir que Miguel nunca ouviu falar de Gun’s and Roses. Há boas surpresas
como Randee Heller voltando ao papel de Lucille, mãe de Daniel e constantes
homenagens e referências aos primeiros filmes, inclusive a inesquecível trilha
sonora de Bill Conti! Tudo isso vai deliciar os fãs de Karatê Kid. Já quem não
conhece... Bom, quem não conhece?
Mas a grande sacada da série é trazer Johnny Lawrence
para o centro das atenções. Como se ele tivesse sido transportado dos anos 80
para cá instantaneamente com uma atuação sensacional de William Zabka que dá ao
seu personagem exatamente um equilíbrio entre um cara durão irritado com sua
vida e um homem em busca de consertar os erros do passado, mas sem nunca
abaixar a cabeça. Ele praticamente não sorri e notamos sua alegria e satisfação
com os alunos com um meio sorriso discreto. Tão pouco chora, sua interpretação
é sempre contida, como se carregasse o peso dos anos de desilusões daquele
jovem arrogante do filme de 1984. Ele também nunca deixa o lado bad-ass para
trás. Ao saber que sua aluna é vítima de ciberbullying, Johnny se revolta e
comenta que “na minha época, a gente fazia bullying olhando nos olhos da
pessoa. Hoje se escondem atrás de um computador, são uns covardes”.
Embora baseado nos personagens e em uma história clássica
dos anos 80, Cobra Kai traz a tona uma discussão atual sobre a busca do equilíbrio
em uma época em que predomina uma cultura de radicalismo entre preto e branco,
esquerda e direita, capitalismo ou comunismo, politicamente correto ou
incorreto. Saber se impor, exigir respeito e ao mesmo tempo entender e
respeitar o próximo e as diferenças é o grande desafio do mundo contemporâneo, algo
muito mais complicado e difícil que vencer um torneio. Basta lembrar que
escândalos sexuais já afetam a entrega do prêmio Nobel, desconstroem carreiras
no cinema, medalhas olímpicas foram confiscadas por conta de comprovações de doping
com conivência do governo russo, enfim, entramos de vez em uma era em que
vencer a todo custo não é primordial. Os meios são mais importantes que os
fins. Ao mesmo tempo, ainda precisamos nos impor, porque o mundo e nossa
sociedade continua sendo implacável com os perdedores.
Agora é ficar na torcida para a série fazer sucesso e trazer
novas temporadas. Porque ficou bem claro que a história entre Johnny e Daniel ainda
tem muita coisa para nos ensinar e nos divertir.
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