sábado, outubro 26, 2019

Diário de um peladeiro XXXI – Quando a derrota é a maior vitória


Existe uma falsa crença de que a ansiedade e a depressão são sinais de fraqueza e de incapacidade diante da vida. Mas não, uma pessoa com ansiedade, depressão ou sintomas mistos NÃO está louca e nem tem uma personalidade fraca ou inferior aos outros.
É triste e esgotador lutar contra isso. Pensar em "salvar o mundo", se realizar profissionalmente, ser mais produtivo, e ao mesmo tempo, não ter ânimo e não conseguir fazer nada. Pouco tempo depois, pensar em desistir de tudo, não enxergar sentido na vida e achar que aquilo nunca vai passar. Ter medo de tudo que vai fazer e, na maioria das vezes, pensar no pior. Pessoas que têm transtorno de ansiedade sabem bem como é isso.
Por isso, dado que a depressão e a ansiedade não são contempladas como feridas que precisam de atenção, é comum ouvir discursos circulares com argumentos do tipo “relaxe”, “não é para tanto”, “comece a se mexer, a vida não é isso”, “você não tem razões para chorar”, “comece a amadurecer” “Vou me afastar de você até você melhorar”, “Mas você está sempre assim?” , etc.
Em alguns casos, a pessoa não sente vontade de se relacionar, nem cumprir atividades simples e acha que todos estão contra ela. Muitas vezes, trata-se da depressão que, se não tratada, faz com que a pessoa sinta vontade de cometer o suicídio.
Uma reação comum nesses casos, para fugir da autopiedade, da entrega, do fantasma do suicídio, a gente apela para um processo parecido com a de uma pessoa se afogando. A gente se debate e sobra porrada para todo mundo. Principalmente para quem está perto. A gente encontra culpados, reclama, briga, mas acreditem, isso é uma coisa positiva de um certo ponto de vista. É melhor brigar com pessoas legais (e escrotas) que se entregar a depressão. Porque se a pessoa é realmente uma “pessoa legal”, ela acaba entendendo. Se não é, um peso morto a menos para te puxar para baixo.
Há exatamente um ano atrás, eu estava numa das piores crises de depressão que já tive. Entre outros, descontei no grupo da pelada do Sábado, organizado pelo Ricardo Beghini que é o cara mais gentleman que conheço. Não fiz nada de grandioso ou histérico. Apenas cheguei à conclusão que futebol não era para mim e sai do grupo. Estava chateado comigo e com o mundo. Me sentia atrapalhando os outros e não era só em campo, era na vida. Futebol para mim (sim estou sendo repetitivo de propósito) é uma metáfora para a vida, sempre foi.
Ao contrário do que aconteceu com meus casamentos/namoros em relação à depressão, a reação ali foi de extrema solidariedade e carinho em relação aos amigos. Houve bronca também, uma bronca proveitosa, apenas de um amigo mais chegado, meu quase irmão Gustavo Paraviso. Mas no geral foi um momento marcante, o famoso divisor de águas. Pois, acredite ou não, naquela altura do campeonato da vida, saber que existem pessoas que se importam contigo faz uma grande diferença. Pois o deprimido não enxerga muita coisa além de dor e horror. É preciso escancarar na cara dele que há coisas boas no mundo.
Talvez hoje isso pareça palavras bonitas escolhidas para causar impacto. Talvez porque seja difícil mensurar ou classificar em palavras a importância que aquele episódio teve na minha vida. Não foi instantâneo. Não foi como naqueles filmes em que a pessoa tem um epifania e sai gritando pelas ruas que ama a vida; não é como o Rocky Balboa que se levanta e parte para massacrar o adversário de uma hora para outra. Na verdade, os resultados do que foi plantado ali, em 23 de outubro de 2018, só começaram a ser colhidos lá pelo mês passado. E teve participação de várias pessoas que ajudaram, desde amigos e amigas daqui e do Rio de Janeiro, alguns de São Paulo, até o apoio da família. E teve outra parte também, que foi me afastar de pessoas ruins, as famosas pessoas tóxicas que só te puxam para baixo. Mas leva tempo, não é como nos filmes...
Mas por coincidência, hoje foi um daqueles dias ruins. Apesar de bem fisicamente, ainda falta muita coisa. Acertei duas bolas lindas na trave, mas trave não é gol. E dei um passe tão ruim, mas tão ruim para o Baiano hoje, que fiquei deprimido dentro de campo. Estou falando de um passe de um metro de distância que consegui errar. Aí, o adversário pegou e fez o gol.
Perdi todas, repito, todas as partidas de hoje. Foi realmente um dia de bosta. Teve o mesmo tipo de confusão de um ano atrás. Novamente envolvendo a discussão “quem vai ficar com o perna de pau ali no time?” e ninguém queria. A confusão se estendeu por quase cinco minutos.
 Saí triste de campo, chateado, decepcionado, arrasado..., mas aí que vi como as coisas mudaram de um ano para cá.
Primeiro que, ao contrário do ano passado, eu confio nesses amigos. Eu sei que são meus amigos. Eu sei que tenho amigos. Depois, é que eu aceito meus limites. Aceito que posso errar, que o erro faz parte do jogo. Aceito também que tenho o meu direito sagrado de ficar chateado com meus erros. Aceito que vou ter que conviver com a dor de uma coluna lesionada para o resto da vida, mas que não vou deixá-la ditar os meus limites. Aceitar os meus limites é uma coisa, parar de desafiá-los é outra.
Outra coisa que mudou é que a autoestima é outra. E não me senti ofendido ou menosprezado ou chateado pela confusão. A decepção foi apenas de mim para mim mesmo.
Até então, acho que só vinha revezando entre dias muito bons e dias razoáveis. Esse talvez tenha sido o verdadeiro teste para saber se a depressão havia realmente sido vencida. Não dá para saber só com dias felizes. É preciso um dia de bosta para realmente testar sua autoestima.
Enfim, dizem que há males que vem para bem. A maioria vem para o mal, mesmo. Mas hoje, esse dia ruim serviu para me mostrar por A e B que eu estou bem por dentro. Pode ser até que o futebol ainda não esteja lá estas coisas. Talvez nunca chegue o dia em que eu apresente um futebol satisfatório. O objetivo nunca foi esse. O objetivo é lidar com a depressão e principalmente com a ansiedade. Neste ponto, foi um dia muito bom. Talvez o melhor do ano.

Saldo de 2019:
40 jogos
30 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.

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