domingo, março 26, 2017

Trilogia Before





A trilogia "Before" do Richard Linklater é um dos projetos mais poderosos sobre a natureza do amor em todos os tempos. O mais surpreendente é que não foi um projeto, mas algo tão natural quanto despretensioso.

Começou em 1995 com o filme Antes do Amanhecer (Before Sunrise) com uma história simples sobre dois jovens se encontrando em um trem e resolvendo passar um dia juntos. Com atuações impecáveis de Ethan Hawke e Julie Delpy, eles nos apresentam o americano Jesse e francesa Celine. O filme mostra os dois se apaixonando quase em tempo real. Não há tramas complicadas, mistérios ou reviravoltas. Não tem um vilão ou desafio. Apenas duas pessoas conversando e se apaixonando enquanto caminham pelas belas ruas de Viena. E acredite, é um dois filmes mais românticos já feitos.

No final, ambos tem uma ideia típica da idade em que se encontram, na casa dos 24 anos: não trocar sobrenome, telefone ou endereço, mas se encontrariam em seis meses no mesmo local. E o filme acaba deixando para nossa imaginação descobrir o que iria acontecer àqueles jovens e belos amantes.

A história terminaria por aí se não fosse um desses acasos da vida. O diretor Richard Linklater, que tecnicamente pertencia à série C do cinema americano, produziu um sucesso de bilheteria, no caso, A Escola de Rock com o doidão Jack Black. E o ator Ethan Hawke foi indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por Um Dia de Treinamento. Com dinheiro, poder e fama, os dois resolveram arriscar a fazer uma continuação daquele filme que não pedia uma continuação. Foi aí que, em 2004, veio Antes do Pôr do Sol (Before Sunset), mostrando o que havia acontecido com Celine e Jesse nove anos depois.

Descobrimos que a avó de Celine morreu perto do dia do encontro e ela acabou não podendo ir. Jesse foi e ficou dias procurando ela mas sem sucesso. A vida deles seguiu de uma forma cruel. Ambos sonhando um com o outro. Jesse casou-se porque sua namorada engravidou. Continuou casado por comodismo e por amar o filho, sempre sonhando secretamente com aquela francesa do trem. Celine tocou a vida da melhor maneira que pode, mas também sem tirar o garoto americano da cabeça. Enfim, Jessie resolve escrever um livro sobre aquele encontro na esperança de que, caso o livro fosse um sucesso, ele acabasse encontrando aquela mulher novamente. Deu certo. Em um lançamento em Paris, Celine aparece na livraria e os dois voltam a conversar e se apaixonar.

Mas se antes eles estavam na casa dos 24 aos, agora estavam com 33. A perspectiva muda. O rosto e o corpo dos atores também. O fogo da juventude que incendiava seus olhares em 95 se transforma quase em um desespero. É como se um visse no outro, a última oportunidade de ser feliz na vida.

O filme novamente termina em aberto. Desta vez, porém, temos certeza que os dois vão ficar juntos. Era quase o único caminho a ser seguido para manter a sanidade de ambos.

Embora Julie Delpy não tenha se tornado uma atriz de sucesso em Hollywood, sua carreia foi bem na França. Hawke e Linklater continuaram a fazer sucesso mundial com a força do cinema americano.

Inevitavelmente, nove anos depois, veio o terceiro filme Antes da meia-noite (Before Mindnight) em 2013. Pessoalmente, fiquei morrendo de medo. Por favor, não mexam novamente com Celine e Jesse. Deixe os dois no “Felizes para Sempre”, por favor?

Mas o trio não me escutou e veio o que, até agora, é o filme mais premiado da trilogia. Chegando inclusive a ser indicado ao Oscar de roteiro original e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz para Julie Delpy. É o filme mais pesado também.

Assim como a vida, a história segue. Agora Jesse e Celine estão casados (ufa!) e tem filhas gêmeas. O filho de Jesse de primeiro casamento já é um adolescente e vive com a mãe nos EUA enquanto Jesse tenta viver na Europa com Celine. Agora os atores estão com 42 anos. Pela primeira vez, temos uma cena de nudez de Julie Delpy mostrando os seios, o corpo exibe uma barriguinha, rugas, muitas rugas em ambos. A barbicha de Jesse começa a embranquecer.

Embora a paixão continue, estão agressivos e cruéis um com o outro. Metade do filme é briga e feia. O assunto traição vem à tona. Aqueles jovens de vinte anos atrás, apaixonados, agora discutem se é justa a divisão de tarefas domésticas. Ele um escritor de relativo sucesso, se mudou para a França, - algo que para um americano é bem doloroso - para ficar perto dela, longe do filho. Celine, por sua vez, continua trabalhando. De noite, é ela quem cuida das gêmeas para ele escrever. Ou seja, ela faz aquelas típicas jornadas de trabalho dupla, no serviço e depois em casa. Ele escreve (acreditem em mim, é um trabalho que consome o indivíduo) e convive com a culpa de não estar sempre presente.

Em seu terceiro ato, a trilogia não tem medo de mostrar o lado mais cruel do “Felizes para Sempre” dos contos de fadas. Novamente a história termina de forma aberta. Novamente, entendemos que o casal vai permanecer junto, pois NOVAMENTE os atores nos convencem de forma absoluta de que Jesse e Celine se amam apaixonadamente e literalmente nasceram um para o outro. Mas algo mudou radicalmente e do casal apaixonado e puro de 1995, passamos para o casal estressado de 2013.

De certa forma, a trilogia “Before” é um magnífico estudo sobre o amor verdadeiro e poderoso que une aqueles dois seres humanos que acompanhamos durante vinte anos. Mas também pode ser um cruel filme de terror se assistido em sequência. A deterioração de corpos e sentimentos é honesta, cruel e assustadoramente bela. Manter uma relação tem seu preço. O “felizes para Sempre” cobra tributos e estes são altíssimos. Isso nunca foi mostrado nas telas de cinema com tanto realismo. Entretanto, talvez seja uma das poucas obras românticas a mostrar o amor em “tempo real” de forma tão verdadeira, sem idealizações, sem concessões. Ainda assim, continua sendo belo, continua sendo romântico.

Tecnicamente os filmes são impecáveis com diálogos, interpretações e direção de um realismo impressionante. Os atores vestem os personagens de tal maneira que muitos fãs se apaixonam por eles a cada filme. Os personagens são complexos, ricos e multifacetados. No último filme, Julie Delpy está particularmente impressionante pela transformação física e a francesinha inteligente de 95 deu lugar a uma mulher maldosa, sofrida e que parece prestes a explodir. Ethan Hawke não é exatamente um ator de grandes expressões, mas se entrega a Jesse e o jovem hiper-romântico vai se tornando um cara que carrega a culpa e o comodismo de uma vida em que consegue sucesso como escritor, mas fica dilacerado por viver em um país distante e longe do filho. A química entre os atores é tão grande que estranhamos muito o fato de nunca terem sido casados um com o outro.


Uma curiosidade ainda mais cruel sobre a trilogia, é que o primeiro filme foi inspirado em um encontro de Richard Linklater com uma jovem chamada Amy Lehrhaupt na Filadélfia. Assim como no primeiro filme, os dois passaram pouco tempo juntos e não mais se encontraram. Assim como no segundo filme, Linklater fez sua obra com um desejo secreto de poder assim, reencontrar aquela moça. Infelizmente, a vida foi mais cruel que a arte e Amy morreu em um acidente de moto meses antes da estreia de Antes do Amanhecer.

Acho relevante dizer que literalmente cresci e envelheci junto com Celine e Jesse. Quando vi o filme de 1995, pensei: É isso que eu quero para a minha vida! Quero uma Celine para mim! Encontrei e já estava casado com ela 2004 quando o casal se reencontrou em Paris e os apresentei para a então esposa. Quando assistimos em 2013 a Antes do Meia-noite, o impacto foi tão grande que nos separamos menos de um ano depois. Então, aconselho a assistir com muita cautela.

O diretor e os atores, que agora também são roteiristas, pretendem mostrar Jesse e Celine ainda mais uma vez, quando completar mais nove anos. Devemos encontrá-los agora na casa dos 50 e tenho medo do que vem por aí, embora tenha certeza que será incrivelmente belo e poético, além de, é claro, assustador. Confesso que aguardo ansiosamente por esse encontro com esses velhos amigos.

Enfim, apesar dessa crueldade em não dourar a pílula, não há como negar que se trata de uma obra poderosa e apaixonada que desconstrói o romantismo sem destruí-lo. A intenção não é botar água no chope dos românticos, mas dizer que, apesar de tudo, não há coisa melhor (e mais trabalhosa) que estar com a pessoa que amamos. Acredito que essa trilogia seja recomendada a todo mundo, mas principalmente a quem quer entender essa coisa louca que chamamos de amor.




domingo, fevereiro 05, 2017

Lúcifer – resenha da primeira temporada (sem spoilers)

Antes de mais nada, não li as versões em HQ mas já sei que desvirtuaram muito o personagem. Então, vamos nos ater a série.
Bom, para quem não sabe, Lúcifer é uma série de tevê que conta a história de ninguém menos que o diabo em pessoa. Ele se enche de tomar conta do inferno e resolve largar tudo e abrir uma boate em Los Angeles chamada Lux. Sim, trata-se de uma comédia com lances dramáticos e muitos elementos policiais.
Cinco anos depois de chegar ao mundo dos humanos, Lúcifer (Tom Ellis) já está devidamente estabelecido e feliz com sua vida de dono de boate; acompanhado por sua aliada, um demônio chamado Mazikeen (Lesley-Ann Brandt), quando seu irmão Amenadiel (D. B. Woodside), outro arcanjo, chega com a missão de convencê-lo a voltar para seu emprego antigo, ou seja, tomar conta do inferno. Lúcifer continua fazendo pactos e trocando favores. Nenhuma mulher parece imune ao seu charme e ele continua, claro, imortal. Para desespero de Amenadiel, ele não tem vontade alguma de retornar para o inferno.
Tudo muda quando o diabo conhece a detetive Chloe Decker (Lauren German) que não apenas parece imune a todo seu charme, como também de alguma forma o torna vulnerável (mortal) quando está próxima a ele.
Por um lado, Lúcifer parece uma cópia escancarada de The Mentalist e um pouco também House, ou seja, um personagem totalmente anárquico, que caga para as regras e normas da sociedade mas que acaba desarmando as pessoas e resolvendo crimes com seus talentos. A parte mais fraca da série é justamente cair para o lado policial, ou seja, todo episódio tem um crime a ser desvendado por Satanás. É muita preguiça e desperdício de personagem. Os poderes de Lúcifer também são incrivelmente limitados. Ele apenas tem seu charme, persuasão, super força e invulnerabilidade. Para descobrir quem cometeu um crime, ele precisa investigar. Nada de onipotência e onipresença. Mas vamos combinar, se ele fosse mais poderoso, daria um trabalho danado para os roteiristas e inviabilizaria o orçamento da série. Ou seja, aceitar um diabo com poderes limitados é fundamental para se divertir com a série.
Já por outro lado, a série tem seus muitos pontos fortes. Primeiro com os atores. Tom Ellis está perfeito como um diabo fora do convencional e, ao mesmo tempo, bem pesquisado. Afinal, não vamos esquecer que a história original (depois da Bíblia, claro) é do genial Neil Gaiman (que criou o personagem, mas não fez a primeira HQ solo) que sempre faz o dever de casa. A igreja (católica) não atribui oficialmente Lúcifer como um ser causador do mal e sim como um anjo caído. E é assim que Tom Ellis o interpreta, como um filho rebelde de Deus que recebeu a missão de cuidar do inferno e, ao mesmo tempo, questiona o amor de seu pai. Fascinado com a raça humana, ele se ressente de ter todo o mal atribuído a ele, uma vez que os humanos possuem o livre arbítrio. O Diabo de Ellis se mostra como uma criança mimada com um brinquedo novo nas mãos, nesse caso, a população de Los Angeles. Ao mesmo tempo, o ator mostra determinada fragilidade e simpatia que nos faz torcer pela sua versão do Coisa Ruim.
A versão apresentada por Gailman e pela série já causou polêmica e protestos entre religiosos por apresentar um diabo tão simpático, mas aí não é problema meu.
Outro diferencial de Lúcifer é como os personagens e situações vão sendo explorados de maneira inteligente. Um dos momentos geniais da série é quando Lúcifer resolve se consultar periodicamente com uma psicóloga (Rachael Harris) para resolver sua “crise dos 10 bilhões de anos” e tentar resolver as questões de família.
As relações com o irmão Amenadiel interpretado pelo ator negro D. B. Woodside rendem também ótimas situações. 
Lauren German não economiza em beleza para tornar a sua detetive, Chloe Decker, um elemento típico de shippers, ou seja, aquele relacionamento clichê em que todos os expectadores vão ficar torcendo para acabar em romance entre ela e Lúcifer. Chloe é uma personagem muito bem montada. É filha de uma atriz de sucesso relativo dos anos 80 (Rebeca de Mornay) e de um policial. Sendo assim, antes de seguir a carreira do pai, ela tentou seguir a carreira da mãe, fazendo um filme adolescente em que aparece nua, algo que gera boas situações de humor e também funciona para explicar bem as motivações da personagem. Além disso, ela é separada e tem uma filha Trixie (Scarlett Estevez) que está sempre testando a paciência e a simpatia de Lúcifer, que diz que não gosta de crianças mas, é claro, vai ter seu coração demoníaco conquistado por Trixie.
Apesar de seguir a fórmula episódica de crime da semana a ser desvendado, o roteiro é bastante inteligente quando demonstra consciência dos clichês com os quais está lidando. Assim, o ex-marido de Chloe e pai de Trixie, Dan (Kevin Alejandro) é um policial que tem sua subtrama com segredos e reviravoltas. Claro que queremos que ele seja o cara mal para justificar o possível romance entre Lúcifer e Chloe. O roteiro sabe disso e brinca (tortura) com a gente sem nos chamar de idiotas.
Enfim, Lúcifer nos passa a impressão de ser uma série com pouca pretensão, pouco dinheiro (os efeitos especiais são discretos e ruins), mas que entrega sempre bons roteiros e ótimas atuações.
Se você for um religioso pouco inteligente, do tipo que comemorou a morte da esposa de Lula, melhor ver algo na Rede Record. Também não é indicado a quem busca uma trama mais séria e densa. Lúcifer é apenas um pouco mais adulto e mais apimentado que Once Upon a Time (que eu ainda adoro). 
Mas confesso que, mesmo achando alguns episódios repetitivos, acabei gostando do resultado final, ao menos da primeira temporada. Que venha a segunda.

sexta-feira, setembro 02, 2016

Star Trek Sem fronteiras




A série de tevê Star Trek, que completa 50 anos este mês de setembro de 2016, foi criada por um piloto de avião e policial que resolveu ser roteirista. Gene Roddenberry poderia fazer uma trinca com Antoine de Saint-Exupéry e Richard Bach como meus autores preferidos, todos eles pilotos de avião e com uma inocência e um otimismo que beiram a breguice.  Sim, o universo imaginado por Roddenberry mostra um futuro promissor para a humanidade que deixará não apenas as limitações do planeta Terra como as limitações sociais, políticas, religiosas... O homem transcenderá a fome, a pobreza, as guerras, os preconceitos, as injustiças e se tornará algo mais. Se transformará na tripulação da USS Enterprise, o suprassumo do ser humano: eficiente, determinado, justo, corajoso, conciliador, cheio de compaixão. Não é preciso hesitar nem um segundo para determinar que, de todos os universos criados no século XX, seja a galáxia distante de Star Wars, a Terra-média de O Senhor dos Anéis, Westeros de Game of thrones e até o mundo dos “não trouxas” criado por J.k. Rowling, a Federação dos Planetas Unidos de Star Trek é de longe o de melhor qualidade de vida.

Agora com Star Trek – Beyond temos o mito nerd Simon Pegg como roteirista e o inesperado Justin Lin, um chinês conhecido por ignorar as leis da física em seus filmes em pró de elementos, digamos, hiperdramáticos. Ao contrário de J.J. Abrams, Lin é fã assumido das séries de TV. E não é que ele mostrou realmente uma boa parte da essência da série? Lá estava o clima de amizade, companheirismo e o idealismo. A visão de um futuro onde as guerras se tornam obsoletas e a ciência em seu estado puro triunfam sobre o ego, a ganância, a vaidade.

Como de praxe, muitas homenagens, principalmente ao falecido Leonard Nimoy que geram pelo menos dois momentos de suor nos olhos. Nem mesmo a última série de Star Trek que foi ao ar na TV, a série Enterprise, ficou de fora das homenagens, com direito a uma nave da classe NX. Estas homenagens desta vez foram mais sutis ou mais orgânicas à trama que os momentos forçados do filme anterior que chegou a mostrar Spock gritando “KHANNNN” com a sutileza de um zagueiro da terceira divisão do futebol carioca.

Apesar de tudo, não é o melhor filme dessa “Trilogia do Abrams” (o criador de Lost continua como produtor). O primeiro filme ainda é mais interessante, mas esse é mais equilibrado e realmente lembra um (bom) episódio superproduzido da série de TV. Um problema do filme está no vilão que nunca entendemos direito o que diabos pretende e por que? Como ele conseguiu tamanho poder de fogo e por que resolveu usá-lo só naquela hora? Quem são os ajudantes dele? Outro problema que se repetiu nos três filmes: por que os escudos da Enterprise e da Federação parecem nunca funcionar contra os vilões?

E tem a história: depois de três anos da missão de cinco anos da Enterprise para explorar o espaço profundo, Kirk começa a ficar entediado, chegando a se questionar se era essa mesmo a vida que ele queria para si. Até que, ao atender um pedido de socorro, se depara com um novo e poderoso inimigo que, apesar de não entendermos muito bem o que quer, sabemos que é mal e faz maldades. Presos num planeta desconhecido, sem poder fazer contato com a Federação, nossos heróis tem que usar suas habilidades para evitar que um vilão chamado Krall dê o créu na tripulação da Enterprise e de uma estação espacial próxima.

Além das qualidades já citadas, tem a personagem de Sofia Boutella, Jaylah, uma Bad Ass que rouba cenas no melhor estilo coadjuvantes da Disney salvando a história com altas doses de simpatia e acrescentando boas cenas de luta corporal que, se parar para pensar, sempre foram marcas registradas da série na geração clássica e na nova. A rima (termo muito usado pelo diretor George Lucas para classificar cenas que os personagens parecem voltar a pontos semelhantes durante fases diferentes da jornada do herói) feita pela música Sabotage dos Beastie Boys, conectando com a primeira cena de introdução do jovem James Kirk lá no primeiro filme com a cena de batalha decisiva, foi um dos pontos altos do filme e boas sacadas do diretor, bem como a presença de uma nave da classe NX no filme, sim, quem assistiu a última série de Star Trek a ir ao ar na TV, a polêmica Star Trek: Enterprise, vai entender do que estou falando.

A polêmica mais falada atualmente sobre a sexualidade do piloto Hikaru Sulu foi mostrada de forma eficiente, sutil e respeitosa em duas cenas curtas: uma mostra a foto da filha do personagem ao lado de seu painel de controle e outra em que ele encontra seu parceiro (ponta do co-roteirista Doug Young) e sua filha na estação espacial. Honestamente, para uma série que sempre se notabilizou por lutar por causas polêmicas como o racismo, preconceito, guerra do Vietnã numa época em precisava ter muita coragem para fazer isso nos EUA, a cena foi sutil até demais. O ator George Takei, o Sulu original, gay assumido, declarou que não gostou da homenagem, provavelmente um gesto de pura humildade ou mesmo modéstia. Particularmente achei a homenagem perfeita e totalmente compatível com a utopia de Gene Roddenberry combatendo preconceito com inteligência e elegância.

Com resultado irregular nas bilheterias mundiais, a morte de Leonard Nimoy e a morte prematura do jovem Anton Yelshin, não será surpresa se este terceiro Star Trek encerrar esse ciclo no cinema. Acho que cumpriu bem a função de lembrar ao público atual que existiu Star Trek e uma nave chamada Enterprise. Mas fico no aguardo para que a série retorne à tevê que seu habitat natural e de forma mais moderna e com a força que sempre teve.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

15 DE FEVEREIRO DE 2016 - 452 anos de Galileu Galilei.


Segue abaixo a carta de abjuração de Galileu (1633). Ele foi obrigado a negar tudo o que dizia para não ser queimado pela igreja.

"Eu, Galileu Galilei, filho do finado Vincenzio Galilei de Florença, com setenta anos de idade, vindo pessoalmente ao julgamento e me ajoelhando diante de vós Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Inquisidores Gerais da República Cristã Universal, contra a corrupção herética, tendo diante de meus olhos os Santos Evangelhos, que toco com minhas própria mãos, juro que sempre acreditei, e, com o auxílio de Deus, acreditarei no futuro, em tudo a que a Santa Igreja Católica e Apostólica de Roma sustenta, ensina e pratica. Mas como fui aconselhado, por este Ofício, a abandonar totalmente a falsa opinião que sustenta que o Sol é o centro do mundo e que é imóvel, e proibido de sustentar, defender ou ensinar a falsa doutrina de qualquer modo; e porque depois de saber que tal doutrina era repugnante diante das Sagradas Escrituras, escrevi e imprimi um livro, no qual trato da mesma e condenada doutrina, e acrescendo razões de grande força em apoio da mesma, sem chegar a nenhuma solução, tendo sido portanto suspeito de grave heresia; ou seja porque mantive e acreditei na opinião que diz que o Sol é o centro do mundo e está imóvel, e que a Terra não é o centro e se move, desejo retirar esta suspeição da mente de vossas Eminências e de qualquer Católico Cristão, que com razão era feita a meu respeito, e por isso, de coração e com verdadeira fé, abjuro, amaldiçoo e detesto os ditos erros e heresias e de uma maneira geral todo erro ou conceito contrário `a dita Santa Igreja; e juro não mais no futuro dizer ou asseverar qualquer coisa verbalmente ou por escrito que possa levantar suspeita semelhante sobre minha pessoa; mas que, se souber da existência de algum herege ou alguém suspeito de heresia, o denunciarei a este Santo Ofício, ou ao Inquisidor do lugar onde me encontrar. Juro ainda mais e prometo que satisfarei totalmente e observarei as penitências que me forem ou me sejam ditadas pelo Santo Ofício. Mas se acontecer que eu viole qualquer de minhas promessas, juramentos, e protestos (que Deus me defenda!) sujeito-me a todos os castigos que forem decretados e promulgados pelos cânones sagrados e outras determinações particulares e gerais contra crimes deste tipo. Assim, que Deus me ajude, bem como os Santos Evangelhos, os quais toco com as mãos, e eu, o acima chamado Galileu Galilei, abjuro, juro, prometo e me curvo como declarei; e em testemunho do mesmo, com minhas próprias mãos subscrevi a presente abjuração, que recitei palavra por palavra.”
Em Roma, no Convento de Minerva, 22 de Junho de 1633. Eu, Galileu Galilei abjurei como acima por minhas próprias mãos.

terça-feira, dezembro 01, 2015

O eterno e desnecessário recalque trekker

Não é só no Brasil. Para mostrar que amamos uma coisa sentimos necessidade de mostrar hostilidade com outra. A noção de identidade às vezes tem mais a ver com quem não somos.
Mesmo assim, fico impressionado com o recalque dos Trekkers em relação a proximidade do Despertar da Força. 

Vários amigos que são fanáticos assumidos de Star Wars confessam que, assim como eu, são trekkers, as vezes gostam mais de Star Trek que Star Wars. Então é estranho para mim quando alguém se vê obrigado a escolher um lado.
Embora as duas séries sejam basicamente Space Opera, Star Trek tem muito mais a ver com ciência e tecnologia, enquanto Star Wars tem mais a ver com aventura. Daí a grande discussão se Star Wars era realmente ficção científica e não fantasia. A dúvida pega carona numa briga antiga quando o contador ligado a exatas Jules Verne não aceitava que as discussões sociais do biólogo H.G. Wells fossem consideradas ficção científica.

Então, numa discussão de boteco é fácil provar que Star Trek é melhor, ou pior, que Star Wars. Depende só de quem tiver a melhor memória. Há momentos trash em que Kirk lutou contra uma cenoura gigante e há momentos fantásticos como em que Picard vive em poucas horas a vida inteira de um alienígena de uma raça que já se extinguiu (inner light). Mesmo na subestimada série Enterprise, última aparição da série na TV, há episódios absurdamente bons.

A rivalidade deu uma acirrada depois que o diretor J.J. Abrams foi chamado para dirigir O Despertar da Força. O diretor foi levado ao cobiçado trono para dirigir Star Wars justamente por ter salvo Star Trek da morte horrível nos cinemas. Feitos não para agradar os trekkers, mas para ressuscitar uma série morta e deixá-la atraente para uma nova geração, os filmes do Abrams deixaram a ciência de lado mas abraçaram um tom de absoluta reverência aos personagens. Claro, pegar Star Trek e deixar a ciência de lado é um troço perigoso.

No segundo filme, Into the Darkness, há uma cena em que a Enterprise está com os motoros estourados ao lado da Lua e, 3 minutos depois, está caindo na atmosfera da Terra atraída pela gravidade. Isso é abusar da paciência e boa vontade até de fãs de Transformers. Fazer isso com Trekker confesso que irritou até a mim (trekker também com muito orgulho).

Pelo que vejo, às vezes Trekkers se comportam como tias velhas com inveja do primo bonito que tem um bom emprego e vários troféus em casa. Mas o "primo pobre" tem entre seus muitos feitos o fato de ter inspirado 99% dos autores de ficção científica, astronautas, engenheiros espaciais do mundo. Enfim, Star Trek merece mais que ser comparado a Star Wars o tempo todo. 

sábado, outubro 17, 2015

CLFC lança prêmio Argos de Literatura Fantástica 2015


No ano em que comemora seus 30 anos de fundação o Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil – CLFC lança a sétima edição do prêmio Argos de Literatura Fantástica, um dos mais importantes do cenário nacional. O objetivo é incentivar e prestigiar a leitura de obras do gênero de autores nacionais.
Esse ano o prêmio traz além das tradicionais categorias de Melhor Romance e Melhor Conto, estreia de melhor Antologia ou Livro de Contos. Ou seja, três categorias de premiações.
A festa de entrega do prêmio vai ser durante o Jedicon Rio de Janeiro 2015 nos dias 28 e 29 de novembro no Planetário da Gávea e vai ter como homenageado o escritor Jorge Calife que receberá o prêmio Argos pelo conjunto da obra. Jorge Calife autor da saga Padrões de Contato ficou famoso na década de 80 por ter escrito a novela 2002 que foi enviada a Arthur C. Clarke que inspirou o livro 2010 – A Segunda Odisseia. O livro se transformou em nada menos que a continuação de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, considerado por muitos como o melhor filme de ficção científica de todos os tempos.

De acordo com o presidente do Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil, Clinton Davisson, para concorrer ao prêmio não é necessário se inscrever. “Qualquer história de ficção científica, fantasia ou terror publicada originalmente em língua portuguesa, em meio impresso ou digital, durante o ano de 2014 está apta a receber votos e a votação é realizada somente pelos sócios do Clube que conta hoje com 1040 associados oficiais”, explica o presidente.
As votações se iniciam no dia 19 de outubro, segunda-feira e vão até 1º de novembro.
Os finalistas serão divulgados dia 8 de novembro e os vencedores serão revelados durante o Jedicon 2015.
O prêmio surgiu no início da década passada e durou quatro edições em 2000, 2001, 2002 e 2003. O nome do prêmio foi uma homenagem à Coleção Argonauta, uma série de livros de bolso de ficção científica, publicada pela Editora Livros do Brasil, pioneira na divulgação do gênero em língua portuguesa.
De acordo com o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, um dos criadores do prêmio e agora consultor da nova edição do Argos, o nome foi um consenso porque o próprio Clube nasceu de uma convocação impressa no livro do Roberto Cezar Nascimento, Quem é Quem na Ficção Científica – Volume 1: A Coleção Argonauta. “A Coleção Argonauta sempre foi importante para a maioria dos sócios da velha-guarda. Daí, quando se pensou em criar um prêmio do CLFC, ‘Argos’ foi o nome de consenso”, lembra.

Os interessados em se associar ao CLFC podem encontrar instruções no site www.clfc.com.br onde também consta o regulamento da premiação.

domingo, agosto 23, 2015

Lá vamos nós para mais uma Bienal do Livro









O escritor Clinton Davisson, presidente do Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil, vencedor do Prêmio Nautilus da Revista Scifi News contos e autor da saga Hegemonia - O Herdeiro de Basten estará no estande da Editora Draco promovendo o Brasil Fantástico, segundo livro do CLFC que promove uma releitura do folclore nacional.

segunda-feira, maio 11, 2015

50 tons de Arquivo X

Com Gillian Anderson e Jamie Dornan, série The Fall nos deixa a impressão de ver a Agente Scully tentando prender Christian Grey


É engraçado saber que séries inglesas também precisam ganhar versões americanizadas para passar nos EUA. Esse inclusive é o tema de série, no caso Episodes. Mas isso fica bem claro quando assistimos The Fall.
 Quem se acostumou as tiros, explosões, correrias das séries americanas, vai ter dificuldade com o ritmo lento de The Fall. Embora isso seja uma qualidade a maior parte do tempo, confesso que às vezes perdi a paciência, principalmente no penúltimo episódio.


The Fall é uma série inglesa estrelada pela eterna Agente Scully de Arquivo X, Gillian Anderson, e pelo desejado Christian Grey na adaptação cinematográfica de 50 Tons de Cinza, Jamie Dornan. Criada por Allan Cubitt, a série apresenta os trabalhos da detetive Stella Gibson (Gillian Anderson), que é chamada pela polícia da Irlanda para investigar os crimes que vêm sendo cometidos por um assassino em série. O público acompanha simultaneamente os trabalhos da detetive e a vida do criminoso, Paul Spector (Jamie Dornan), um homem casado e com uma filha pequena, que não consegue conter seu desejo de atacar mulheres.


Com um ritmo lento, porém intenso, a série não faz cerimônia em explorar a sensualidade de seus atores principais e coadjuvantes. Mas é nas interpretações que os atores exibem o que tem de melhor. Rotulada para sempre como a agente Dana Scully de Arquivo X, Anderson volta a fazer uma investigadora, usa roupas bem parecidas, participa de autópsias, mostra o mesmo andar e as pernas imortalizadas em Arquivo X, mas é nas sutis diferenças entre as personagens que ela cresce e aparece. Stella Gibson é uma mulher madura, segura de si e de sua sensualidade. Além de tudo é tão fria que parece descender do iceberg que afundou o Titanic. Enquanto Scully vivia à sombra do Agente Mulder, Stella está sempre no controle e exala força em todas as cenas.  Em determinado momento um personagem chega a perguntar: “Você tem ideia do efeito que causa nos homens? Eu largaria tudo, família, emprego, tudo por você!” e recebe apenas um olhar gelado, como se mentalmente ela repetisse a famosa frase de Rick Blaine em Casablanca: “Se eu ao menos pensasse em você, provavelmente te desprezaria”.


 Já Jamie Dornan também faz um personagem que poderia ser muito bem uma variação de Christian Grey, ou talvez uma irônica fanfic de 50 Tons de Cinza com o tema: o que aconteceria se Christian Grey não fosse rico? Pacato psicólogo, pai de dois filhos, casado com uma enfermeira feiosa, Paul Spector ama sua família, é um profissional competente e, ao contrário de Christian Grey, nos é apresentado o tempo todo como um ser humano real.  Se você teve coragem de ir ao cinema ver 50 Tons de Cinza (não foi meu caso), deve ter rido na famosa cena onde o galã brega diz para Anastasia Steele que não faz amor, ele “fode... e com força”. Fica difícil imaginar o mesmo ator que protagonizou essa que talvez entre para a história como uma das piores cenas de todos os tempos no cinema, fazer uma declaração de amor para uma personagem específica nos últimos episódios que me fez literalmente desabar em lágrimas. Muito se comentou da atuação hipnótica de Vincent D’Onofrio como Wilson Fisk na série O Demolidor e provavelmente haverá prêmios para esse ator no próximo ano se existe alguma justiça neste mundo. Agora, Jamie Dornan não ficou atrás (sem trocadilhos maldosos, please) e mergulhou na psique de seu psicopata frio e implacável que também pode ser um pai de família amoroso e profissional exemplar.  A série é tão bem escrita que entendemos perfeitamente todos os porquês e motivações do personagem sem a necessidade de defende-lo ou mesmo redimi-lo. Ele é um escravo de seus próprios desejos, um viciado em morte.  Entendemos que a frieza que une Stella Gibson e Paul Spector os faz quase espelhos. Almas gêmeas que, em certo ponto, parecem ter consciência do que representam um para o outro.

Fica apenas o reforço do aviso: não espere uma série movimentada e se prepare para poucos acontecimentos. Mas esse ritmo, ou a falta dele,  é compensado largamente com um roteiro bem amarrado e atuações soberbas.

De ruim, fica apenas a estranheza diante do anúncio de uma possível terceira temporada. Não consigo imaginar que Stella e Paul tenham algo mais a me dizer. Entretanto, se tiverem, estarei lá para escutar, é o mínimo que posso fazer para agradecer esses atores e seus maravilhosos personagens.

terça-feira, janeiro 29, 2013

50 tons de cinza



A jovem virgem Anastasia Steele quebra um galho para uma amiga de faculdade e vai entrevistar um jovem empresário no lugar dela. Ela não faz curso de jornalismo, mas nos EUA, jornalismo não precisa de diploma universitário, então, qualquer um pode fazer o trabalho. E lá vai Ana com as perguntas na mão sem ter a mínima ideia de quem seja seu entrevistado. Aí aparece Christian Grey, rico, malhado, o mais belo dos belos. Ela faz uma entrevista ridícula, mas o destino dá um jeito dos dois se esbarrarem para, a exemplo de Crepúsculo, ele possa dizer para ela se afastar dele porque ele é “perigoso”. Claro que o cara vai ficar atrás dela o tempo todo só para dizer o quanto é perigoso e ela vai se apaixonar por todo aquele dinheiro, presentes e músculos bem torneados.
Para quem não lembra, eu defendi Crepúsculo anos atrás, apesar de todos os defeitos, relacionei seu sucesso a jornada do herói versão feminina. Onde a princesa encontra o príncipe perfeito e vive feliz para sempre. O absurdo da história é aceitável se a gente levar em conta os mitos masculinos que Arnold Schwarzenegger e Silvester Stallone emplacaram no cinema. Os caras podem bater, ou melhor, matar qualquer um que cruze seu caminho. Trata-se de uma válvula de escape para um mundo onde precisamos ser controlados e educados. Por que as mulheres não podem ter sua própria válvula de escape?
Fora o fator “dança do acasalamento”. Bella e Edward fazem o que qualquer casal apaixonado, adolescente ou não, costuma fazer. São contraditórios. Ele diz a toda hora que não podem ficar juntos, mas não larga do pé dela. Ela sabe que ele é “perigoso” por ser um “vampiro”, mas também não fica longe dele.
Agora, 50 Tons de Cinza, que começou como um fanfic de Crepúsculo, usa a mesma tática. Ele é tudo que uma mulher independente gostaria de ter como válvula de escape. Ou seja, um cara rico, bom de cama, culto, controlador e que gosta dela. Por que? Hora, deve ser cansativo levar vida de mulher independente, eu acho. Provavelmente muito mais dura do que a de um homem. Hoje em dia as mulheres costumam sustentar a casa, cuidar do marido, dos filhos, ser dona de casa e ainda arrumar tempo para estudar. Imaginar um cara rico que possa dar tudo que ela precisa e ainda ser bom de cama é um direito de sonho bem razoável, não acham?
O problema é que o livro é realmente feito para mulheres com a vida sexual muito, muito, muito monótona. Só assim para achar o livro picante. Fico me perguntando, será que os homens modernos são tão ruins de cama assim?
Gostei, entretanto, da tridimensionalidade do personagem principal, Christian Grey, ao menos ele tem uma explicação freudiana para agir do jeito que é. Ao mesmo tempo, o personagem é todo caótico. É rico, ok! Não nasceu rico. Adotado, filho de uma viciada em crack, passou dificuldades na infância. Ficou rico com o próprio esforço antes dos 30 anos. Na verdade tem entre 27 e 28 anos. Como ele arrumou tempo para ficar rico, aprender a pilotar, tocar piano, entender de vinhos, música clássica e literatura? Provavelmente com o dispositivo vira-tempo de Dumbledore.
A personagem Ana Steele é daquelas que você imagina com um corpão de garota do fantástico, mas cabeça de vento. Tudo o que ela faz para encantar Christian Grey é... nada. Ela só é bonita e gostosa. Além de burra o suficiente para não se dar conta disso. Demora a entender as piadas do cara. Demora a entender o que ele quer. Demora a entender tudo. Perto dela, Isabella de Crepúsculo poderia ser astronauta da Nasa.
O que menos gostei do livro foi a desonestidade da autora em relação a personagem principal. Claramente seduzida por toda grana e os presentes de Christian Grey, Anastasia jamais admite isso e apenas se questiona se ele é capaz de amá-la. Em um romance de verdade, isso acontece? Claro, sempre sentimos as dúvidas mais esquisitas e adotamos o comportamento mais incoerente quando estamos apaixonados. Mas no caso aqui, o problema é o exagero. Tudo em relação a riqueza de Christian é descrito com fetichização exacerbada, mas a autora tenta nos convencer que nada disso abala a cabeça da menina. Ela apenas quer ser amada. Lembrei do filme O Diabo Veste Prada onde ocorre uma situação parecida. A personagem de Anne Hathaway acaba sendo seduzida pelo glamour do mundo da moda e é justamente nessa corrosão de caráter que repousa o melhor do filme. O duelo entre o caráter da personagem e a sedução diabólica do mundo da moda. Daí o nome “Diabo” no título do filme, entre outras coisas. Aqui a autora joga isso fora para fazer uma criatura unidimensional e irritante. Ela precisaria de uma atriz muito carismática para defendê-la no cinema porque no livro, você entende claramente por que Christian Grey é fascinado por ela: ela é gostosa, muito gostosa. Mas não entende por que ele simplesmente não se limita a fazer sexo com ela e pronto. Ela é burra, não precisa conversar tanto com ela. Não precisa mandar tantos e-mails. Não precisa nada. Ela já se entregou totalmente e está feliz com os presentes. É só dizer que a ama que ela é idiota suficiente para acreditar.
Na maior parte do tempo, o livro não sai do lugar. O namoro dos dois começa e os dois transam. A primeira cena de sexo é leve e bem escrita, consegue ser excitante sem em nenhum momento parecer vulgar. Mas depois a coisa vai ficando repetitiva. A preocupação excessiva de Christian em não machucar Ana, entra em contraste com o discurso de que gosta de sadomasoquismo. Quando a prometida surra finalmente acontece, é algo tão sem sal que decepciona.
Enfim, 50 Tons de Cinza é um livro fundamental para se entender o mundo pós-feminismo, onde parece que as mulheres cansaram do discurso de independência e demonstram que encontrar alguém que lhes dê segurança financeira e lhes encha de agrados pode não ser o fim do mundo. Embora eu considere um livro bem machista, não é um machismo masculino. Ao contrário, é bem feminino. Lembrando que as pessoas mais machistas que conheci na vida eram mulheres, mas lembrando também que, o feminismo propõe não apenas direitos iguais, mas também que mulheres podem e devem ser seres humanos e, por isso, não precisam ser perfeitas. É na cobrança dessa perfeição que algumas religiões defendem que a mulher deve ter o clitóris extirpado, afinal, já são perfeitas então não precisam de mais esse prazer.
É nesse permitir não ser perfeita que o livro se encaixa. É o direito de descanso, de poder gostar de um canalha, de poder sair da linha, de experimentar coisas novas, nem que seja ler e gostar de um livro tão ruim. Duvido que leitoras de 50 Tons de Cinza vão vender a dignidade em troca de presentes, assim como fãs de Schwarzenegger não saem por aí matando as pessoas. É tudo uma válvula de escape.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Minha viagem com um imortal - 3ª e última parte


Chegamos a Juiz de Fora cansados. Não é uma viagem longa. Apenas três horas do Rio até o Bar Salvaterra onde paramos para encontrar a comitiva. Mas a Serra de Petrópolis tira qualquer um do sério.
O fato é que cheguei como um herói. O homem que pegou carona com o imortal! Falou-se até em uma estátua de Papel Machê em tamanho natural dentro da sala do Diretório Acadêmico Vladimir Herzog. Ficaria logo ao lado do boneco enforcado feito em homenagem ao jornalista que havia sido morto por enforcamento pela Ditadura. Era uma homenagem bem questionável, diga-se de passagem. Mas quando eu questionei isso aos dirigentes do D.A. responderam que ninguém acha de mal gosto homenagear Jesus Cristo com bonecos crucificados. Preferi não estender a conversa. Enfim, fui mais festejado talvez que o próprio Cony, que esbanjava bom humor e gostava claramente do assédio dos estudantes.
De lá, tomamos café e rumamos para o hotel.  No caminho, descemos pela Av. Independência e passamos em frente à Praça Presidente Antônio Carlos onde pudemos ver o Quartel do Exército.
- Olha, eu fiquei preso ali! – gritou o imortal apontando o dedo como uma criança que lembra das férias que passou na casa da avó.
Pensei comigo, eram realmente outros tempos os da Ditadura. O cara perdeu emprego, foi preso e exilado do país. Mas levava tudo numa boa, falando dos guardas como se fossem os primos sacanas que lhe puxavam as cuecas.  Conversei com ele sobre isso. Disse que, antigamente, prendiam, torturavam e matavam. Hoje, simplesmente não dão emprego a pessoa e pronto. Ele respondeu que a luta na época era por liberdade de poder dizer aquilo que se pensa. A luta foi vitoriosa, afinal, pois hoje, ninguém liga para isso. Dizer o que pensa é natural. Ninguém vai entrar na sua casa e te prender com medo de suas ideias. Isso foi, realmente uma vitória.
Anos depois, soube que o Cony recebeu uma indenização milionária pelos “inconvenientes” que envolviam mais de seis prisões e um exílio. Lembro que muita gente criticou indignada porque acha que os danos não foram tão grandes. Talvez não fossem, mas não estou qualificado para julgar isso. O fato é que o valor recebido pelo Cony é merecido, na minha humilde e insignificante opinião, como prêmio porque ousou combater um regime que oprimia, entre outras coisas, o livre pensamento. Acho que um país começa a trilhar sua grandiosidade quando reconhece os erros e as injustiças que cometeu.
A noite a palestra tinha casa cheia. Precisamos usar o auditório do curso de Direito na Faculdade ao lado, porque o nosso humilde auditório da Comunicação não comportaria todo mundo.
- Está muito cheio, né? – comentou Cony visivelmente surpreso com o amontoado de gente que se espremia para vê-lo.
Novamente, tentei usar do meu costumeiro e falho bom humor e soltei:
- Será que pensam que é o Paulo Coelho quem vem aqui hoje?
- Será? – perguntou seriamente. – Mas ele vem? O povo não vai ficar chateado se aparecer só eu?
Tentei explicar que era uma piada ruim, mas no final, tive que gritar para ser ouvido no meio da fuzuê da multidão. Ele entendeu e gostou de saber que todas aquelas pessoas estavam ali por causa dele, mesmo.
Fui promovido então de carona a segurança do imortal. Tive que lidar com excesso de gente querendo falar com ele. Pedindo coisas malucas: “Escreve neste papel algo que preciso fazer para me tornar um grande jornalista”, pediu um calouro.
O Edílson fazia a função com uma elegância sem comparação. E eu incorporando o espírito dos Corleones já querendo empurrar, bater e dizer que não era pessoal.
Na hora da palestra, o protocolo organizado pelo nosso D.A. foi realmente engraçado. Porque pediu para subir várias pessoas à mesa com o Cony, não as deixou falar nada e depois pediu para descer causando risos nervosos em todos. O Cony pediu para não ser chamado de imortal. Foi como o Pelé querer ser só o Edson, ou seja, totalmente inútil.
Da fala dele eu lembro pouca coisa. O que marcou foi a afirmação da recusa de fazer Bundas, a revista que causava certo furor na época por ser uma tentativa de continuação do lendário Pasquim.
- Me chamaram para fazer Bundas e eu respondi que fiz bundas a vida toda. Não era o que eu queria no momento – comentou o imortal diante das risadas da plateia.
Após a palestra e uma tumultuada saída do auditório fomos para um restaurante, o Faisão Dourado, acompanhados da professora Leila Barbosa de literatura, uma das pessoas mais simpáticas daquela faculdade. Apesar de ser perto de onde ele esteve preso, Cony parecia bem a vontade. Talvez se sentisse a vontade por estar perto de onde “morou” em JF. Lá nos sentamos e conversamos sobre vários assuntos.
Eu, como sempre, quis agradar e puxei assunto sobre operas. Algo que, na época, não entendia bulhufas. Cansado de tentar fazer pose, resolvi ser eu mesmo e falei de futebol. Para minha surpresa, ele puxou os assuntos que eu mais gostava: ficção científica e cinema. Foi uma conversa agradável. O imortal e eu, conversando como dois iguais. Lembrei do Dino da Silva Sauro que, no Dia do Arremesso, poderia jogar a sogra no poço de piche e isso o fazia ter direitos iguais aos de seu superior, Senhor Richfield. Me senti ali, naquele momento, um escritor de verdade. Como se, sentar-se a mesa com um grande escritor e o fato dele saber meu nome, me tornassem algo digno de nota.
Foi quando Carlos Heitor Cony comentou sobre 2001 – Uma Odisseia no Espaço e falou da experiência de ver o filme de Kubrick no cinema. Raíssa estava lá, com seus belos olhos azulados iluminando o prato de ravióli e perguntou o ano da produção o filme.
- 1969 – respondeu Cony.
- 1968 – corrigi.
- 1969 – insistiu o imortal.
- 1968 – insistiu o reles mortal, mais humilde dos humildes.
- 1969!
- 1968 – tornei a dizer e argumentei. – Eu fiz um trabalho sobre o filme outro dia para a faculdade, por isso a memória ainda está fresca.
De fato, o que me marcara na data era que todas as imagens impactantes de Kubrick haviam sido mostradas na tela um ano antes do homem descer na Lua. Argumentei ainda que os filmes demoravam a chegar ao Brasil antigamente. Guerra nas Estrelas, por exemplo, chegou ao Brasil em 1978. Apesar de ter sido lançado em 25 de maio de 1977 nos EUA.
- Mas tenho certeza que o filme é de 1969! – afirmou Cony com segurança.
- Vamos apostar? – provoquei.
- Vamos! – topou o imortal.
- Se eu estiver certo, você faz o prefácio do meu próximo livro!
- Combinado! – disse o imortal sem pestanejar. – E se eu estiver certo?
- Tudo bem, eu faço o prefácio do seu próximo livro! – falei com naturalidade. Todos riram, claro.
Bom, acompanhei Cony e Edilson até o hotel para explicar o caminho novamente. Juiz de Fora não é exatamente uma cidade pequena, com seus 500 mil habitantes. Senti aquele aperto no coração. Era o fim da jornada ao lado do imortal. Todos os meus sonhos e objetivos como escritor pareciam se refletir na testa calva daquele pequeno grande homem. Ele era jornalista, era escritor, era um formador de opinião. Tudo o que eu queria ser. Lembrei daqueles programas idiotas que levavam fãs para jantar com seus ídolos, mas eram cantores, atores e jogadores de futebol. Eu fui ator de teatro durante cinco anos, em Volta Redonda, atuei e escrevi peças e até filmes. Fui cantor durante três anos em Juiz de Fora e joguei futebol com frequência tão alucinada que cheguei ao ponto de passar em algumas peneiras. Não, não estou querendo desprezar essas profissões. Mas eu sou um escritor. Sempre quis ser um escritor. Se vou ser famoso, ou se vou ser bom, não importa. Mas algo me dizia que, naquele momento, eu estava mais perto da luz. Podia ser uma luz divina ou mesmo aquela luz da varanda que queima as mariposas idiotas. Sim, talvez eu fosse ali uma mariposa insignificante orbitando e tietando aquele cidadão. Mas foi um momento de alegria para mim.
Nunca tive coragem de cobrar o prefácio. Ele prometeu que leria o Fáfia e isso me dava mais medo que satisfação. Passados tantos anos, ainda me recordo com alegria daquela jornada a um mundo de seios, ventres, astronautas, militares e, sobretudo, um sujeito notável e imortal.