sexta-feira, setembro 02, 2016

Star Trek Sem fronteiras




A série de tevê Star Trek, que completa 50 anos este mês de setembro de 2016, foi criada por um piloto de avião e policial que resolveu ser roteirista. Gene Roddenberry poderia fazer uma trinca com Antoine de Saint-Exupéry e Richard Bach como meus autores preferidos, todos eles pilotos de avião e com uma inocência e um otimismo que beiram a breguice.  Sim, o universo imaginado por Roddenberry mostra um futuro promissor para a humanidade que deixará não apenas as limitações do planeta Terra como as limitações sociais, políticas, religiosas... O homem transcenderá a fome, a pobreza, as guerras, os preconceitos, as injustiças e se tornará algo mais. Se transformará na tripulação da USS Enterprise, o suprassumo do ser humano: eficiente, determinado, justo, corajoso, conciliador, cheio de compaixão. Não é preciso hesitar nem um segundo para determinar que, de todos os universos criados no século XX, seja a galáxia distante de Star Wars, a Terra-média de O Senhor dos Anéis, Westeros de Game of thrones e até o mundo dos “não trouxas” criado por J.k. Rowling, a Federação dos Planetas Unidos de Star Trek é de longe o de melhor qualidade de vida.

Agora com Star Trek – Beyond temos o mito nerd Simon Pegg como roteirista e o inesperado Justin Lin, um chinês conhecido por ignorar as leis da física em seus filmes em pró de elementos, digamos, hiperdramáticos. Ao contrário de J.J. Abrams, Lin é fã assumido das séries de TV. E não é que ele mostrou realmente uma boa parte da essência da série? Lá estava o clima de amizade, companheirismo e o idealismo. A visão de um futuro onde as guerras se tornam obsoletas e a ciência em seu estado puro triunfam sobre o ego, a ganância, a vaidade.

Como de praxe, muitas homenagens, principalmente ao falecido Leonard Nimoy que geram pelo menos dois momentos de suor nos olhos. Nem mesmo a última série de Star Trek que foi ao ar na TV, a série Enterprise, ficou de fora das homenagens, com direito a uma nave da classe NX. Estas homenagens desta vez foram mais sutis ou mais orgânicas à trama que os momentos forçados do filme anterior que chegou a mostrar Spock gritando “KHANNNN” com a sutileza de um zagueiro da terceira divisão do futebol carioca.

Apesar de tudo, não é o melhor filme dessa “Trilogia do Abrams” (o criador de Lost continua como produtor). O primeiro filme ainda é mais interessante, mas esse é mais equilibrado e realmente lembra um (bom) episódio superproduzido da série de TV. Um problema do filme está no vilão que nunca entendemos direito o que diabos pretende e por que? Como ele conseguiu tamanho poder de fogo e por que resolveu usá-lo só naquela hora? Quem são os ajudantes dele? Outro problema que se repetiu nos três filmes: por que os escudos da Enterprise e da Federação parecem nunca funcionar contra os vilões?

E tem a história: depois de três anos da missão de cinco anos da Enterprise para explorar o espaço profundo, Kirk começa a ficar entediado, chegando a se questionar se era essa mesmo a vida que ele queria para si. Até que, ao atender um pedido de socorro, se depara com um novo e poderoso inimigo que, apesar de não entendermos muito bem o que quer, sabemos que é mal e faz maldades. Presos num planeta desconhecido, sem poder fazer contato com a Federação, nossos heróis tem que usar suas habilidades para evitar que um vilão chamado Krall dê o créu na tripulação da Enterprise e de uma estação espacial próxima.

Além das qualidades já citadas, tem a personagem de Sofia Boutella, Jaylah, uma Bad Ass que rouba cenas no melhor estilo coadjuvantes da Disney salvando a história com altas doses de simpatia e acrescentando boas cenas de luta corporal que, se parar para pensar, sempre foram marcas registradas da série na geração clássica e na nova. A rima (termo muito usado pelo diretor George Lucas para classificar cenas que os personagens parecem voltar a pontos semelhantes durante fases diferentes da jornada do herói) feita pela música Sabotage dos Beastie Boys, conectando com a primeira cena de introdução do jovem James Kirk lá no primeiro filme com a cena de batalha decisiva, foi um dos pontos altos do filme e boas sacadas do diretor, bem como a presença de uma nave da classe NX no filme, sim, quem assistiu a última série de Star Trek a ir ao ar na TV, a polêmica Star Trek: Enterprise, vai entender do que estou falando.

A polêmica mais falada atualmente sobre a sexualidade do piloto Hikaru Sulu foi mostrada de forma eficiente, sutil e respeitosa em duas cenas curtas: uma mostra a foto da filha do personagem ao lado de seu painel de controle e outra em que ele encontra seu parceiro (ponta do co-roteirista Doug Young) e sua filha na estação espacial. Honestamente, para uma série que sempre se notabilizou por lutar por causas polêmicas como o racismo, preconceito, guerra do Vietnã numa época em precisava ter muita coragem para fazer isso nos EUA, a cena foi sutil até demais. O ator George Takei, o Sulu original, gay assumido, declarou que não gostou da homenagem, provavelmente um gesto de pura humildade ou mesmo modéstia. Particularmente achei a homenagem perfeita e totalmente compatível com a utopia de Gene Roddenberry combatendo preconceito com inteligência e elegância.

Com resultado irregular nas bilheterias mundiais, a morte de Leonard Nimoy e a morte prematura do jovem Anton Yelshin, não será surpresa se este terceiro Star Trek encerrar esse ciclo no cinema. Acho que cumpriu bem a função de lembrar ao público atual que existiu Star Trek e uma nave chamada Enterprise. Mas fico no aguardo para que a série retorne à tevê que seu habitat natural e de forma mais moderna e com a força que sempre teve.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

15 DE FEVEREIRO DE 2016 - 452 anos de Galileu Galilei.


Segue abaixo a carta de abjuração de Galileu (1633). Ele foi obrigado a negar tudo o que dizia para não ser queimado pela igreja.

"Eu, Galileu Galilei, filho do finado Vincenzio Galilei de Florença, com setenta anos de idade, vindo pessoalmente ao julgamento e me ajoelhando diante de vós Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Inquisidores Gerais da República Cristã Universal, contra a corrupção herética, tendo diante de meus olhos os Santos Evangelhos, que toco com minhas própria mãos, juro que sempre acreditei, e, com o auxílio de Deus, acreditarei no futuro, em tudo a que a Santa Igreja Católica e Apostólica de Roma sustenta, ensina e pratica. Mas como fui aconselhado, por este Ofício, a abandonar totalmente a falsa opinião que sustenta que o Sol é o centro do mundo e que é imóvel, e proibido de sustentar, defender ou ensinar a falsa doutrina de qualquer modo; e porque depois de saber que tal doutrina era repugnante diante das Sagradas Escrituras, escrevi e imprimi um livro, no qual trato da mesma e condenada doutrina, e acrescendo razões de grande força em apoio da mesma, sem chegar a nenhuma solução, tendo sido portanto suspeito de grave heresia; ou seja porque mantive e acreditei na opinião que diz que o Sol é o centro do mundo e está imóvel, e que a Terra não é o centro e se move, desejo retirar esta suspeição da mente de vossas Eminências e de qualquer Católico Cristão, que com razão era feita a meu respeito, e por isso, de coração e com verdadeira fé, abjuro, amaldiçoo e detesto os ditos erros e heresias e de uma maneira geral todo erro ou conceito contrário `a dita Santa Igreja; e juro não mais no futuro dizer ou asseverar qualquer coisa verbalmente ou por escrito que possa levantar suspeita semelhante sobre minha pessoa; mas que, se souber da existência de algum herege ou alguém suspeito de heresia, o denunciarei a este Santo Ofício, ou ao Inquisidor do lugar onde me encontrar. Juro ainda mais e prometo que satisfarei totalmente e observarei as penitências que me forem ou me sejam ditadas pelo Santo Ofício. Mas se acontecer que eu viole qualquer de minhas promessas, juramentos, e protestos (que Deus me defenda!) sujeito-me a todos os castigos que forem decretados e promulgados pelos cânones sagrados e outras determinações particulares e gerais contra crimes deste tipo. Assim, que Deus me ajude, bem como os Santos Evangelhos, os quais toco com as mãos, e eu, o acima chamado Galileu Galilei, abjuro, juro, prometo e me curvo como declarei; e em testemunho do mesmo, com minhas próprias mãos subscrevi a presente abjuração, que recitei palavra por palavra.”
Em Roma, no Convento de Minerva, 22 de Junho de 1633. Eu, Galileu Galilei abjurei como acima por minhas próprias mãos.

terça-feira, dezembro 01, 2015

O eterno e desnecessário recalque trekker

Não é só no Brasil. Para mostrar que amamos uma coisa sentimos necessidade de mostrar hostilidade com outra. A noção de identidade às vezes tem mais a ver com quem não somos.
Mesmo assim, fico impressionado com o recalque dos Trekkers em relação a proximidade do Despertar da Força. 

Vários amigos que são fanáticos assumidos de Star Wars confessam que, assim como eu, são trekkers, as vezes gostam mais de Star Trek que Star Wars. Então é estranho para mim quando alguém se vê obrigado a escolher um lado.
Embora as duas séries sejam basicamente Space Opera, Star Trek tem muito mais a ver com ciência e tecnologia, enquanto Star Wars tem mais a ver com aventura. Daí a grande discussão se Star Wars era realmente ficção científica e não fantasia. A dúvida pega carona numa briga antiga quando o contador ligado a exatas Jules Verne não aceitava que as discussões sociais do biólogo H.G. Wells fossem consideradas ficção científica.

Então, numa discussão de boteco é fácil provar que Star Trek é melhor, ou pior, que Star Wars. Depende só de quem tiver a melhor memória. Há momentos trash em que Kirk lutou contra uma cenoura gigante e há momentos fantásticos como em que Picard vive em poucas horas a vida inteira de um alienígena de uma raça que já se extinguiu (inner light). Mesmo na subestimada série Enterprise, última aparição da série na TV, há episódios absurdamente bons.

A rivalidade deu uma acirrada depois que o diretor J.J. Abrams foi chamado para dirigir O Despertar da Força. O diretor foi levado ao cobiçado trono para dirigir Star Wars justamente por ter salvo Star Trek da morte horrível nos cinemas. Feitos não para agradar os trekkers, mas para ressuscitar uma série morta e deixá-la atraente para uma nova geração, os filmes do Abrams deixaram a ciência de lado mas abraçaram um tom de absoluta reverência aos personagens. Claro, pegar Star Trek e deixar a ciência de lado é um troço perigoso.

No segundo filme, Into the Darkness, há uma cena em que a Enterprise está com os motoros estourados ao lado da Lua e, 3 minutos depois, está caindo na atmosfera da Terra atraída pela gravidade. Isso é abusar da paciência e boa vontade até de fãs de Transformers. Fazer isso com Trekker confesso que irritou até a mim (trekker também com muito orgulho).

Pelo que vejo, às vezes Trekkers se comportam como tias velhas com inveja do primo bonito que tem um bom emprego e vários troféus em casa. Mas o "primo pobre" tem entre seus muitos feitos o fato de ter inspirado 99% dos autores de ficção científica, astronautas, engenheiros espaciais do mundo. Enfim, Star Trek merece mais que ser comparado a Star Wars o tempo todo. 

sábado, outubro 17, 2015

CLFC lança prêmio Argos de Literatura Fantástica 2015


No ano em que comemora seus 30 anos de fundação o Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil – CLFC lança a sétima edição do prêmio Argos de Literatura Fantástica, um dos mais importantes do cenário nacional. O objetivo é incentivar e prestigiar a leitura de obras do gênero de autores nacionais.
Esse ano o prêmio traz além das tradicionais categorias de Melhor Romance e Melhor Conto, estreia de melhor Antologia ou Livro de Contos. Ou seja, três categorias de premiações.
A festa de entrega do prêmio vai ser durante o Jedicon Rio de Janeiro 2015 nos dias 28 e 29 de novembro no Planetário da Gávea e vai ter como homenageado o escritor Jorge Calife que receberá o prêmio Argos pelo conjunto da obra. Jorge Calife autor da saga Padrões de Contato ficou famoso na década de 80 por ter escrito a novela 2002 que foi enviada a Arthur C. Clarke que inspirou o livro 2010 – A Segunda Odisseia. O livro se transformou em nada menos que a continuação de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, considerado por muitos como o melhor filme de ficção científica de todos os tempos.

De acordo com o presidente do Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil, Clinton Davisson, para concorrer ao prêmio não é necessário se inscrever. “Qualquer história de ficção científica, fantasia ou terror publicada originalmente em língua portuguesa, em meio impresso ou digital, durante o ano de 2014 está apta a receber votos e a votação é realizada somente pelos sócios do Clube que conta hoje com 1040 associados oficiais”, explica o presidente.
As votações se iniciam no dia 19 de outubro, segunda-feira e vão até 1º de novembro.
Os finalistas serão divulgados dia 8 de novembro e os vencedores serão revelados durante o Jedicon 2015.
O prêmio surgiu no início da década passada e durou quatro edições em 2000, 2001, 2002 e 2003. O nome do prêmio foi uma homenagem à Coleção Argonauta, uma série de livros de bolso de ficção científica, publicada pela Editora Livros do Brasil, pioneira na divulgação do gênero em língua portuguesa.
De acordo com o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, um dos criadores do prêmio e agora consultor da nova edição do Argos, o nome foi um consenso porque o próprio Clube nasceu de uma convocação impressa no livro do Roberto Cezar Nascimento, Quem é Quem na Ficção Científica – Volume 1: A Coleção Argonauta. “A Coleção Argonauta sempre foi importante para a maioria dos sócios da velha-guarda. Daí, quando se pensou em criar um prêmio do CLFC, ‘Argos’ foi o nome de consenso”, lembra.

Os interessados em se associar ao CLFC podem encontrar instruções no site www.clfc.com.br onde também consta o regulamento da premiação.

domingo, agosto 23, 2015

Lá vamos nós para mais uma Bienal do Livro









O escritor Clinton Davisson, presidente do Clube dos Leitores de Ficção Científica do Brasil, vencedor do Prêmio Nautilus da Revista Scifi News contos e autor da saga Hegemonia - O Herdeiro de Basten estará no estande da Editora Draco promovendo o Brasil Fantástico, segundo livro do CLFC que promove uma releitura do folclore nacional.

segunda-feira, maio 11, 2015

50 tons de Arquivo X

Com Gillian Anderson e Jamie Dornan, série The Fall nos deixa a impressão de ver a Agente Scully tentando prender Christian Grey


É engraçado saber que séries inglesas também precisam ganhar versões americanizadas para passar nos EUA. Esse inclusive é o tema de série, no caso Episodes. Mas isso fica bem claro quando assistimos The Fall.
 Quem se acostumou as tiros, explosões, correrias das séries americanas, vai ter dificuldade com o ritmo lento de The Fall. Embora isso seja uma qualidade a maior parte do tempo, confesso que às vezes perdi a paciência, principalmente no penúltimo episódio.


The Fall é uma série inglesa estrelada pela eterna Agente Scully de Arquivo X, Gillian Anderson, e pelo desejado Christian Grey na adaptação cinematográfica de 50 Tons de Cinza, Jamie Dornan. Criada por Allan Cubitt, a série apresenta os trabalhos da detetive Stella Gibson (Gillian Anderson), que é chamada pela polícia da Irlanda para investigar os crimes que vêm sendo cometidos por um assassino em série. O público acompanha simultaneamente os trabalhos da detetive e a vida do criminoso, Paul Spector (Jamie Dornan), um homem casado e com uma filha pequena, que não consegue conter seu desejo de atacar mulheres.


Com um ritmo lento, porém intenso, a série não faz cerimônia em explorar a sensualidade de seus atores principais e coadjuvantes. Mas é nas interpretações que os atores exibem o que tem de melhor. Rotulada para sempre como a agente Dana Scully de Arquivo X, Anderson volta a fazer uma investigadora, usa roupas bem parecidas, participa de autópsias, mostra o mesmo andar e as pernas imortalizadas em Arquivo X, mas é nas sutis diferenças entre as personagens que ela cresce e aparece. Stella Gibson é uma mulher madura, segura de si e de sua sensualidade. Além de tudo é tão fria que parece descender do iceberg que afundou o Titanic. Enquanto Scully vivia à sombra do Agente Mulder, Stella está sempre no controle e exala força em todas as cenas.  Em determinado momento um personagem chega a perguntar: “Você tem ideia do efeito que causa nos homens? Eu largaria tudo, família, emprego, tudo por você!” e recebe apenas um olhar gelado, como se mentalmente ela repetisse a famosa frase de Rick Blaine em Casablanca: “Se eu ao menos pensasse em você, provavelmente te desprezaria”.


 Já Jamie Dornan também faz um personagem que poderia ser muito bem uma variação de Christian Grey, ou talvez uma irônica fanfic de 50 Tons de Cinza com o tema: o que aconteceria se Christian Grey não fosse rico? Pacato psicólogo, pai de dois filhos, casado com uma enfermeira feiosa, Paul Spector ama sua família, é um profissional competente e, ao contrário de Christian Grey, nos é apresentado o tempo todo como um ser humano real.  Se você teve coragem de ir ao cinema ver 50 Tons de Cinza (não foi meu caso), deve ter rido na famosa cena onde o galã brega diz para Anastasia Steele que não faz amor, ele “fode... e com força”. Fica difícil imaginar o mesmo ator que protagonizou essa que talvez entre para a história como uma das piores cenas de todos os tempos no cinema, fazer uma declaração de amor para uma personagem específica nos últimos episódios que me fez literalmente desabar em lágrimas. Muito se comentou da atuação hipnótica de Vincent D’Onofrio como Wilson Fisk na série O Demolidor e provavelmente haverá prêmios para esse ator no próximo ano se existe alguma justiça neste mundo. Agora, Jamie Dornan não ficou atrás (sem trocadilhos maldosos, please) e mergulhou na psique de seu psicopata frio e implacável que também pode ser um pai de família amoroso e profissional exemplar.  A série é tão bem escrita que entendemos perfeitamente todos os porquês e motivações do personagem sem a necessidade de defende-lo ou mesmo redimi-lo. Ele é um escravo de seus próprios desejos, um viciado em morte.  Entendemos que a frieza que une Stella Gibson e Paul Spector os faz quase espelhos. Almas gêmeas que, em certo ponto, parecem ter consciência do que representam um para o outro.

Fica apenas o reforço do aviso: não espere uma série movimentada e se prepare para poucos acontecimentos. Mas esse ritmo, ou a falta dele,  é compensado largamente com um roteiro bem amarrado e atuações soberbas.

De ruim, fica apenas a estranheza diante do anúncio de uma possível terceira temporada. Não consigo imaginar que Stella e Paul tenham algo mais a me dizer. Entretanto, se tiverem, estarei lá para escutar, é o mínimo que posso fazer para agradecer esses atores e seus maravilhosos personagens.

terça-feira, janeiro 29, 2013

50 tons de cinza



A jovem virgem Anastasia Steele quebra um galho para uma amiga de faculdade e vai entrevistar um jovem empresário no lugar dela. Ela não faz curso de jornalismo, mas nos EUA, jornalismo não precisa de diploma universitário, então, qualquer um pode fazer o trabalho. E lá vai Ana com as perguntas na mão sem ter a mínima ideia de quem seja seu entrevistado. Aí aparece Christian Grey, rico, malhado, o mais belo dos belos. Ela faz uma entrevista ridícula, mas o destino dá um jeito dos dois se esbarrarem para, a exemplo de Crepúsculo, ele possa dizer para ela se afastar dele porque ele é “perigoso”. Claro que o cara vai ficar atrás dela o tempo todo só para dizer o quanto é perigoso e ela vai se apaixonar por todo aquele dinheiro, presentes e músculos bem torneados.
Para quem não lembra, eu defendi Crepúsculo anos atrás, apesar de todos os defeitos, relacionei seu sucesso a jornada do herói versão feminina. Onde a princesa encontra o príncipe perfeito e vive feliz para sempre. O absurdo da história é aceitável se a gente levar em conta os mitos masculinos que Arnold Schwarzenegger e Silvester Stallone emplacaram no cinema. Os caras podem bater, ou melhor, matar qualquer um que cruze seu caminho. Trata-se de uma válvula de escape para um mundo onde precisamos ser controlados e educados. Por que as mulheres não podem ter sua própria válvula de escape?
Fora o fator “dança do acasalamento”. Bella e Edward fazem o que qualquer casal apaixonado, adolescente ou não, costuma fazer. São contraditórios. Ele diz a toda hora que não podem ficar juntos, mas não larga do pé dela. Ela sabe que ele é “perigoso” por ser um “vampiro”, mas também não fica longe dele.
Agora, 50 Tons de Cinza, que começou como um fanfic de Crepúsculo, usa a mesma tática. Ele é tudo que uma mulher independente gostaria de ter como válvula de escape. Ou seja, um cara rico, bom de cama, culto, controlador e que gosta dela. Por que? Hora, deve ser cansativo levar vida de mulher independente, eu acho. Provavelmente muito mais dura do que a de um homem. Hoje em dia as mulheres costumam sustentar a casa, cuidar do marido, dos filhos, ser dona de casa e ainda arrumar tempo para estudar. Imaginar um cara rico que possa dar tudo que ela precisa e ainda ser bom de cama é um direito de sonho bem razoável, não acham?
O problema é que o livro é realmente feito para mulheres com a vida sexual muito, muito, muito monótona. Só assim para achar o livro picante. Fico me perguntando, será que os homens modernos são tão ruins de cama assim?
Gostei, entretanto, da tridimensionalidade do personagem principal, Christian Grey, ao menos ele tem uma explicação freudiana para agir do jeito que é. Ao mesmo tempo, o personagem é todo caótico. É rico, ok! Não nasceu rico. Adotado, filho de uma viciada em crack, passou dificuldades na infância. Ficou rico com o próprio esforço antes dos 30 anos. Na verdade tem entre 27 e 28 anos. Como ele arrumou tempo para ficar rico, aprender a pilotar, tocar piano, entender de vinhos, música clássica e literatura? Provavelmente com o dispositivo vira-tempo de Dumbledore.
A personagem Ana Steele é daquelas que você imagina com um corpão de garota do fantástico, mas cabeça de vento. Tudo o que ela faz para encantar Christian Grey é... nada. Ela só é bonita e gostosa. Além de burra o suficiente para não se dar conta disso. Demora a entender as piadas do cara. Demora a entender o que ele quer. Demora a entender tudo. Perto dela, Isabella de Crepúsculo poderia ser astronauta da Nasa.
O que menos gostei do livro foi a desonestidade da autora em relação a personagem principal. Claramente seduzida por toda grana e os presentes de Christian Grey, Anastasia jamais admite isso e apenas se questiona se ele é capaz de amá-la. Em um romance de verdade, isso acontece? Claro, sempre sentimos as dúvidas mais esquisitas e adotamos o comportamento mais incoerente quando estamos apaixonados. Mas no caso aqui, o problema é o exagero. Tudo em relação a riqueza de Christian é descrito com fetichização exacerbada, mas a autora tenta nos convencer que nada disso abala a cabeça da menina. Ela apenas quer ser amada. Lembrei do filme O Diabo Veste Prada onde ocorre uma situação parecida. A personagem de Anne Hathaway acaba sendo seduzida pelo glamour do mundo da moda e é justamente nessa corrosão de caráter que repousa o melhor do filme. O duelo entre o caráter da personagem e a sedução diabólica do mundo da moda. Daí o nome “Diabo” no título do filme, entre outras coisas. Aqui a autora joga isso fora para fazer uma criatura unidimensional e irritante. Ela precisaria de uma atriz muito carismática para defendê-la no cinema porque no livro, você entende claramente por que Christian Grey é fascinado por ela: ela é gostosa, muito gostosa. Mas não entende por que ele simplesmente não se limita a fazer sexo com ela e pronto. Ela é burra, não precisa conversar tanto com ela. Não precisa mandar tantos e-mails. Não precisa nada. Ela já se entregou totalmente e está feliz com os presentes. É só dizer que a ama que ela é idiota suficiente para acreditar.
Na maior parte do tempo, o livro não sai do lugar. O namoro dos dois começa e os dois transam. A primeira cena de sexo é leve e bem escrita, consegue ser excitante sem em nenhum momento parecer vulgar. Mas depois a coisa vai ficando repetitiva. A preocupação excessiva de Christian em não machucar Ana, entra em contraste com o discurso de que gosta de sadomasoquismo. Quando a prometida surra finalmente acontece, é algo tão sem sal que decepciona.
Enfim, 50 Tons de Cinza é um livro fundamental para se entender o mundo pós-feminismo, onde parece que as mulheres cansaram do discurso de independência e demonstram que encontrar alguém que lhes dê segurança financeira e lhes encha de agrados pode não ser o fim do mundo. Embora eu considere um livro bem machista, não é um machismo masculino. Ao contrário, é bem feminino. Lembrando que as pessoas mais machistas que conheci na vida eram mulheres, mas lembrando também que, o feminismo propõe não apenas direitos iguais, mas também que mulheres podem e devem ser seres humanos e, por isso, não precisam ser perfeitas. É na cobrança dessa perfeição que algumas religiões defendem que a mulher deve ter o clitóris extirpado, afinal, já são perfeitas então não precisam de mais esse prazer.
É nesse permitir não ser perfeita que o livro se encaixa. É o direito de descanso, de poder gostar de um canalha, de poder sair da linha, de experimentar coisas novas, nem que seja ler e gostar de um livro tão ruim. Duvido que leitoras de 50 Tons de Cinza vão vender a dignidade em troca de presentes, assim como fãs de Schwarzenegger não saem por aí matando as pessoas. É tudo uma válvula de escape.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Minha viagem com um imortal - 3ª e última parte


Chegamos a Juiz de Fora cansados. Não é uma viagem longa. Apenas três horas do Rio até o Bar Salvaterra onde paramos para encontrar a comitiva. Mas a Serra de Petrópolis tira qualquer um do sério.
O fato é que cheguei como um herói. O homem que pegou carona com o imortal! Falou-se até em uma estátua de Papel Machê em tamanho natural dentro da sala do Diretório Acadêmico Vladimir Herzog. Ficaria logo ao lado do boneco enforcado feito em homenagem ao jornalista que havia sido morto por enforcamento pela Ditadura. Era uma homenagem bem questionável, diga-se de passagem. Mas quando eu questionei isso aos dirigentes do D.A. responderam que ninguém acha de mal gosto homenagear Jesus Cristo com bonecos crucificados. Preferi não estender a conversa. Enfim, fui mais festejado talvez que o próprio Cony, que esbanjava bom humor e gostava claramente do assédio dos estudantes.
De lá, tomamos café e rumamos para o hotel.  No caminho, descemos pela Av. Independência e passamos em frente à Praça Presidente Antônio Carlos onde pudemos ver o Quartel do Exército.
- Olha, eu fiquei preso ali! – gritou o imortal apontando o dedo como uma criança que lembra das férias que passou na casa da avó.
Pensei comigo, eram realmente outros tempos os da Ditadura. O cara perdeu emprego, foi preso e exilado do país. Mas levava tudo numa boa, falando dos guardas como se fossem os primos sacanas que lhe puxavam as cuecas.  Conversei com ele sobre isso. Disse que, antigamente, prendiam, torturavam e matavam. Hoje, simplesmente não dão emprego a pessoa e pronto. Ele respondeu que a luta na época era por liberdade de poder dizer aquilo que se pensa. A luta foi vitoriosa, afinal, pois hoje, ninguém liga para isso. Dizer o que pensa é natural. Ninguém vai entrar na sua casa e te prender com medo de suas ideias. Isso foi, realmente uma vitória.
Anos depois, soube que o Cony recebeu uma indenização milionária pelos “inconvenientes” que envolviam mais de seis prisões e um exílio. Lembro que muita gente criticou indignada porque acha que os danos não foram tão grandes. Talvez não fossem, mas não estou qualificado para julgar isso. O fato é que o valor recebido pelo Cony é merecido, na minha humilde e insignificante opinião, como prêmio porque ousou combater um regime que oprimia, entre outras coisas, o livre pensamento. Acho que um país começa a trilhar sua grandiosidade quando reconhece os erros e as injustiças que cometeu.
A noite a palestra tinha casa cheia. Precisamos usar o auditório do curso de Direito na Faculdade ao lado, porque o nosso humilde auditório da Comunicação não comportaria todo mundo.
- Está muito cheio, né? – comentou Cony visivelmente surpreso com o amontoado de gente que se espremia para vê-lo.
Novamente, tentei usar do meu costumeiro e falho bom humor e soltei:
- Será que pensam que é o Paulo Coelho quem vem aqui hoje?
- Será? – perguntou seriamente. – Mas ele vem? O povo não vai ficar chateado se aparecer só eu?
Tentei explicar que era uma piada ruim, mas no final, tive que gritar para ser ouvido no meio da fuzuê da multidão. Ele entendeu e gostou de saber que todas aquelas pessoas estavam ali por causa dele, mesmo.
Fui promovido então de carona a segurança do imortal. Tive que lidar com excesso de gente querendo falar com ele. Pedindo coisas malucas: “Escreve neste papel algo que preciso fazer para me tornar um grande jornalista”, pediu um calouro.
O Edílson fazia a função com uma elegância sem comparação. E eu incorporando o espírito dos Corleones já querendo empurrar, bater e dizer que não era pessoal.
Na hora da palestra, o protocolo organizado pelo nosso D.A. foi realmente engraçado. Porque pediu para subir várias pessoas à mesa com o Cony, não as deixou falar nada e depois pediu para descer causando risos nervosos em todos. O Cony pediu para não ser chamado de imortal. Foi como o Pelé querer ser só o Edson, ou seja, totalmente inútil.
Da fala dele eu lembro pouca coisa. O que marcou foi a afirmação da recusa de fazer Bundas, a revista que causava certo furor na época por ser uma tentativa de continuação do lendário Pasquim.
- Me chamaram para fazer Bundas e eu respondi que fiz bundas a vida toda. Não era o que eu queria no momento – comentou o imortal diante das risadas da plateia.
Após a palestra e uma tumultuada saída do auditório fomos para um restaurante, o Faisão Dourado, acompanhados da professora Leila Barbosa de literatura, uma das pessoas mais simpáticas daquela faculdade. Apesar de ser perto de onde ele esteve preso, Cony parecia bem a vontade. Talvez se sentisse a vontade por estar perto de onde “morou” em JF. Lá nos sentamos e conversamos sobre vários assuntos.
Eu, como sempre, quis agradar e puxei assunto sobre operas. Algo que, na época, não entendia bulhufas. Cansado de tentar fazer pose, resolvi ser eu mesmo e falei de futebol. Para minha surpresa, ele puxou os assuntos que eu mais gostava: ficção científica e cinema. Foi uma conversa agradável. O imortal e eu, conversando como dois iguais. Lembrei do Dino da Silva Sauro que, no Dia do Arremesso, poderia jogar a sogra no poço de piche e isso o fazia ter direitos iguais aos de seu superior, Senhor Richfield. Me senti ali, naquele momento, um escritor de verdade. Como se, sentar-se a mesa com um grande escritor e o fato dele saber meu nome, me tornassem algo digno de nota.
Foi quando Carlos Heitor Cony comentou sobre 2001 – Uma Odisseia no Espaço e falou da experiência de ver o filme de Kubrick no cinema. Raíssa estava lá, com seus belos olhos azulados iluminando o prato de ravióli e perguntou o ano da produção o filme.
- 1969 – respondeu Cony.
- 1968 – corrigi.
- 1969 – insistiu o imortal.
- 1968 – insistiu o reles mortal, mais humilde dos humildes.
- 1969!
- 1968 – tornei a dizer e argumentei. – Eu fiz um trabalho sobre o filme outro dia para a faculdade, por isso a memória ainda está fresca.
De fato, o que me marcara na data era que todas as imagens impactantes de Kubrick haviam sido mostradas na tela um ano antes do homem descer na Lua. Argumentei ainda que os filmes demoravam a chegar ao Brasil antigamente. Guerra nas Estrelas, por exemplo, chegou ao Brasil em 1978. Apesar de ter sido lançado em 25 de maio de 1977 nos EUA.
- Mas tenho certeza que o filme é de 1969! – afirmou Cony com segurança.
- Vamos apostar? – provoquei.
- Vamos! – topou o imortal.
- Se eu estiver certo, você faz o prefácio do meu próximo livro!
- Combinado! – disse o imortal sem pestanejar. – E se eu estiver certo?
- Tudo bem, eu faço o prefácio do seu próximo livro! – falei com naturalidade. Todos riram, claro.
Bom, acompanhei Cony e Edilson até o hotel para explicar o caminho novamente. Juiz de Fora não é exatamente uma cidade pequena, com seus 500 mil habitantes. Senti aquele aperto no coração. Era o fim da jornada ao lado do imortal. Todos os meus sonhos e objetivos como escritor pareciam se refletir na testa calva daquele pequeno grande homem. Ele era jornalista, era escritor, era um formador de opinião. Tudo o que eu queria ser. Lembrei daqueles programas idiotas que levavam fãs para jantar com seus ídolos, mas eram cantores, atores e jogadores de futebol. Eu fui ator de teatro durante cinco anos, em Volta Redonda, atuei e escrevi peças e até filmes. Fui cantor durante três anos em Juiz de Fora e joguei futebol com frequência tão alucinada que cheguei ao ponto de passar em algumas peneiras. Não, não estou querendo desprezar essas profissões. Mas eu sou um escritor. Sempre quis ser um escritor. Se vou ser famoso, ou se vou ser bom, não importa. Mas algo me dizia que, naquele momento, eu estava mais perto da luz. Podia ser uma luz divina ou mesmo aquela luz da varanda que queima as mariposas idiotas. Sim, talvez eu fosse ali uma mariposa insignificante orbitando e tietando aquele cidadão. Mas foi um momento de alegria para mim.
Nunca tive coragem de cobrar o prefácio. Ele prometeu que leria o Fáfia e isso me dava mais medo que satisfação. Passados tantos anos, ainda me recordo com alegria daquela jornada a um mundo de seios, ventres, astronautas, militares e, sobretudo, um sujeito notável e imortal.


quinta-feira, janeiro 05, 2012

120 anos de Tolkien: A Caverna, o Dragão, o Anel e o Guarda-roupas


Por Clinton Davisson

Conheci Tolkien na primeira metade da década de 80 graças ao trailer de O Senhor dos Anéis de Ralph Bakshi, aquele desenho animado esquisito, carregado de clima sombrio. Demorou um ano para arrumar o vídeo mesmo, mas o trailer já me fazia tremer de excitação com aquele universo sinistro e rico. Anos mais tarde já conhecera, também através de desenho, o universo de Nárnia, quando a Rede Globo passou, num domingo, o desenho O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas, feito pelo mesmo Bill Melendez que trouxera a turma do Charlie Brown. Eram universos vivos, pulsantes, tão reais quanto a minha vida pacata em Volta Redonda. Dava para ver que a família do Senhor Castor possuía uma história e que Gollum realmente tinha um passado de sofrimento e tormento. Bem diferente dos desenhos que via na TV na época. O Homem-Pássaro, por exemplo, certamente vivia sentado naquela sala, único cômodo de seu quartel general e não tirava aquela máscara nem para ir ao banheiro. Tomar banho então, impossível. Aliás, o cara não devia nem comer alguma coisa para viver, só ficava lá, esperando um vilão para enfrentar.

Mais tarde veio o desenho Caverna do Dragão, talvez a maior das injustiças da mídia mundial pois, cancelado nos EUA, é um marco cultural no Brasil, sendo amplamente conhecido por pessoas de todas as idades (eu sei porque perguntei para jovens nas escolas de hoje e a popularidade continua soberana) mesmo após 25 anos do cancelamento.

Embora chupasse elementos da mitologia de Tolkien, Caverna do Dragão é muito mais um plágio descarado da obra de C.S. Lewis. Acho estranho que as pessoas se assustem quando eu digo isso. Mas está na cara: jovens encontram uma passagem para outro mundo, recebem armas mágicas e são perseguidas pelo bruxo(a)ditador (a) local, auxiliados por uma entidade (Aslam/ Mestre dos Magos) que parece saber de tudo, mas não conta por pura sacanagem.

Todos estes desenhos precederam a literatura no meu caso. Fui ler Tolkien em 1985. Na época, era difícil encontrar livros do sul-africano. Dependia de uma única livraria em Volta Redonda inteira, a Veredas(que existe até hoje). Não havia aquela coisa de pedir pela internet (não havia nem internet, bom deixar claro para a geração de hoje). A Sociedade do Anel foi fácil, agora As Duas Torres foi épico, só achei edição de português lusitano. O que deixou a saga ainda mais com cara de medieval para mim. O Retorno do Rei apareceu um ano depois em “brasileiro”. C.S. Lewis então, fui ler em 2004, quando anunciaram o filme de “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas”.

Como tudo que é feito por seres humanos, a obra de Tolkien não está livre de defeitos. Aquela inocência dos personagens e o discurso fascista de tudo que é belo é bom, são, em minha humilde opinião, perdoáveis e, cá para nós, até desejáveis nessa época em que tudo tem que ser politicamente correto. O que me incomoda pessoalmente sempre foram aqueles capítulos intermináveis narrando montanhas ao longe de manhã, montanhas ao longe à tarde, montanhas ao longe à noite. Por isso pulei de alegria quando, no cinema, tudo aquilo virou um travelling com música alta e um fade. Outro problema corrigido no cinema foi a falta de mulheres ativas na história. Não, não sou daqueles que reclama do relacionamento esquisito de Frodo e Sam, acho até que isso vai depor a favor de Tolkien no futuro, quando, segundo Irvine Welsh, todo mundo vai ser gay. Acho até esquisita a obsessão de algumas pessoas em relação a isso, pois, em Moby Dick, por exemplo, o capitão Ahab tem um menininho ao seu dispor em sua cabine e o próprio Ismael, personagem principal, casa com o índio Queequeg literalmente logo no inicio do livro. Mesmo quando a homossexualidade está sendo amplamente debatida, focam em Sam e Frodo e esquecem de Ismael e Queequeg. Resumo da história, a sexualidade de Frodo e Sam realmente não me preocupa porque não me interessa.

Influência ativa na atualidade

Mesmo 39 anos após sua morte, John Ronald Reuel Tolkien ainda é influência presente nas obras de fantasia no mundo todo. Trata-se daqueles casos em que a influência é tão poderosa a ponto de virar padrão. Mais ainda, a busca por quebrar, superar, ou simplesmente mudar esse padrão virou uma espécie de Santo Graal da literatura fantástica.

Atualmente o marketing de George R. R. Martin no Brasil flerta com a possibilidade do advento de um “Tolkien para adultos” já que há uma maturidade maior na história das Crônicas de Gelo e Fogo. Personagens mais modernos e menos infantis. Se isso se traduz em um autor melhor ou em uma história melhor, é algo muito subjetivo. Mas o fato é que difícil falar de Martin, sem falar de Tolkien. E para falar de Tolkien, não precisamos mencionar ninguém.

Temos também dos ingleses Neil Gailman e China Miéville venerados, tanto pela crítica, quando pelo mercado editorial, por conseguirem romper em parte a fórmula de anões, magos, elfos e cavaleiros. O local de mineração continua sendo lendas antigas europeias (no caso de Miéville há elementos de outras mitologias), mas o resultado é bem criativo e ousado.

Imitadores ruins e o mercado

Há algo intrigante em relação ao mercado mundial literário, que passa por uma fase revolucionária que começou com Harry Potter e continuou com Crepúsculo. Semelhante ao que aconteceu em 1977 com Star Wars onde as crianças deixaram de ser um tempero e passaram a ser o prato principal da indústria cinematográfica, fazer livros para adolescentes virou o foco do mercado editorial.

A qualidade de Harry Potter é debatida por alguns críticos, pode haver um furo aqui e ali, mas o fato é que o bruxinho não pode ser taxado de mal escrito impunemente. Ao contrário, chegou-se a insinuar que J.K. Rowling usava ghost-writers para “terceirizar” as histórias. Um crítico chegou a dizer: “Ninguém faz livros de tanta qualidade em tão pouco tempo”. Pessoalmente, acho Rowling genial. Sabe construir personagens adoráveis com os quais nos identificamos. E ainda teve a sorte de ser transportada para o cinema por cineastas competentes.

Embora não possamos considerar Stephanie Meyer como uma imitadora de Tolkien, ela é uma das locomotivas que puxam essa revolução literária. Crepúsculo já é um livro ruim de defender, com uma autora pertencente a uma religião que defende abertamente que os negros são descendentes de Cain, e gerou filmes de gosto duvidoso, mas ainda há algo carismático na história meio Romeu e Julieta, meio A Bela e a fera. Sua temática machista e moralista encontrou terreno fértil nos EUA de Busch Jr e vem fazendo uma legião de fãs no Brasil aonde a longevidade do governo petista vem fazendo crescer uma consciência reacionária que flerta com o nazismo. Apesar disso tudo, Crepúsculo ainda é legal de assistir (confesso que só li o primeiro livro e não gostei).

O problema maior começa com a falta de qualidade das obras que vem na cola destas locomotivas de olho nesse novo público infanto-juvenil. Porque grande parte dos adolescentes não tem muito critério para ler. O que era uma opção de Tolkien por um clima mais inocente e infantil, virou uma regra para os imitadores.

A busca por uma nova linguagem ou mesmo por novos cenários e novas temáticas, deu lugar para o “mais do mesmo”. Com uma história copiada de Star Wars e um cenário copiado de Tolkien, o Christopher Paolini virou pesadelo de críticos, mas fez a alegria do mercado e virou síntese de imitadores ruins de Tolkien.

O que acontece no Brasil que me deixa preocupado não é a quantidade de imitadores de Tolkien, mas a falta de criatividade, de bagagem literária e personalidade desses imitadores. Como o mercado está próspero, o que acontece é uma profusão de livros com temáticas de idade média europeia sem se dar ao trabalho de fazer uma pesquisa maior sobre o assunto.

O natural seria se voltar para a cultura nacional, mas aí entra o preconceito do brasileiro classe média pela cultura do próprio país. Confesso, por exemplo, que embora seja fanático por futebol, não morro de amores por samba, e Carnaval para mim seja época de viajar e ficar bem longe... do Carnaval. Tudo bem, questão de gosto, mas vejo certos exageros. “O problema dos autores brasileiros é que insistem em querer nos empurrar essas coisas nacionais que não nos interessam”, bradava um imbecil numa comunidade do Orkut anos atrás, como se falar de coisas nacionais fosse como tentar vender uma droga para seu filho.

Claro, durante muitos anos a única referência das lendas nacionais estava atrelada ao – excelente – trabalho de Monteiro Lobato e suas adaptações televisivas para o mundo infantil. O atual guru do Youtube, PC Siqueira, afirmou: “Não vou me assustar com uma história de Saci. Quem vai se assustar com um bichinho que dá nó em rabo de cavalo? Prefiro Zumbis que comem gente e tem a ver com o fim do mundo. Desculpa!”.

Mas vale citar que houve tempos, 13 anos atrás para ser mais preciso, que filmes de heróis da Marvel eram tidos como inadaptáveis para o cinema. Só Batman e Super-homem tinham conseguido espaço nas telas mundiais, enquanto apenas o Hulk havia conseguido algum sucesso e mesmo assim em uma série de TV. A adaptação do Capitão América para a TV não passou de um piloto insosso na Sessão da Tarde.

Com novas tecnologias digitais, os heróis da Marvel tomaram de assalto o cinema de forma devastadora. O que estou querendo dizer é que, se existem barreiras para que se façam boas histórias envolvendo mitologia nacional, elas são tão consistentes quanto a roupa nova do imperador.

André Vianco, atual golden boy da literatura fantástica no Brasil, já utilizou curupiras bombados em seus livros e vendeu muito. Sem falar que trouxe os vampiros para o Brasil de maneira contundente e não houve problema nenhum nisso. Sem pensar muito, o premiado Max Mallman, criou uma lenda própria de imortais que praticam turismo histórico pelo mundo desde a invenção da escrita e acabam vivendo uma aventura no Rio de Janeiro em seu livro Zigurate.

O escritor Roberto Causo também desenvolveu um trabalho semelhante com o ótimo A Sombra dos Homens que não apenas tive a oportunidade de ler, como também presenciei uma avalanche de críticas cujo poder de fogo se concentrava não na qualidade do livro, mas no fato de usar a mitologia nacional como matéria prima para fantasia. Novamente é como se Causo estivesse querendo empurrar goela abaixo do leitor a “malévola droga da cultura nacional”.

Mas o golpe de misericórdia veio com o humilhante tapa na cara dado pelo norte-americano, Christopher Kastensmidt, que, morando em Porto Alegre, usou lendas nacionais, aquelas que não tinham graça para nós, e criou The Elephant and Macaw Banner, uma série de contos que estão ganhando reconhecimento internacional em revistas respeitadas, graças ao óbvio: o folclore brasileiro é riquíssimo para quem tem ambições literárias que vão além de criar uma aventura de RPG.

É importante enfatizar que não acho ruim ou errado um autor brasileiro escrever sobre elfos e anões e outros temas europeus. Primeiro porque nossas raízes históricas são tão europeias quanto africanas e indígenas. Não sou obrigado a escolher apenas uma. Depois porque criatividade precisa de liberdade. O problema é o preconceito, o ódio que alguns leitores e autores parecem sentir pelas temáticas nacionais.

Enfim, ser fã de Tolkien, C.S. Lewis e simpatizantes é quase uma consequência do amor direto pela literatura fantástica, mas na hora de produzir alguma coisa, o escritor nacional deveria pensar em que tipo de reverência pretende render aos seus mestres. Imagine se os Beatles se contentassem em imitar Buddy Holly e não tentassem inventar mais nada?

Alguns tentam “inovar” de forma esquisita. Pegam os mesmos temas de Tolkien e dizem que “beberam das mesmas fontes”. Afinal, não foi Tolkien que inventou os elfos e os orcs. Aí saem coisas esquisitas como elfos peludos que comem banana, orcs louros, vampiros que brilham no sol... Sei lá, não era melhor inventar algo novo ou talvez algo realmente criativo, ou pegar o velho tema e colocar uma boa história pelo menos?

Talvez esse artigo tenha um pouco de dor de cotovelo, afinal, pertenço muito mais ao seguimento de ficção científica, aquele tema que todos adoram ver no cinema, mas pouca gente lê. Mas não consigo ver vantagem em tentar clonar o texto de Tolkien 39 anos após sua morte.

Mas o que defendo é que ousadia e bagagem literária são marcas do bom escritor e vejo pouca coisa disso na fantasia brasileira atualmente. Se a ideia é homenagear mestre Tolkien, acho que o mestre merecia um pouco mais em seu aniversário de 120 anos, concorda?

*Clinton Davisson é jornalista, escritor e presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica e autor da saga Hegemonia onde usa descaradamente fadas taradas, sereias feministas (que subjugam os machos da espécie) e dragões com problemas existenciais, além de uma raça de gambás maconheiros. Por isso todo o texto acima pode ser uma grande hipocrisia... Ou não...