Entrevistei Leonardo Boff uma vez em 2004. Muita gente pensa que foi ele
que inventou essa história, mas a primeira vez que se falou de uma águia criada
como galinha no mundo ocidental foi no início do século XX, através do pesquisador
africano, James Emman Kwegyir Aggrey. A história é basicamente sobre um
fazendeiro que pegou uma águia ainda filhote e botou no galinheiro. Com o
tempo, a águia cresceu e um pesquisador que ficou intrigado com aquele
fenômeno. Houve um embate argumentativo entre os dois para resolver se a águia
ainda era uma águia, ou se ela tinha se transformado em uma galinha. No fim, o
pesquisador convenceu o fazendeiro a soltar a águia e o bicho voou e nunca mais
voltou. Afinal, por mais que crescesse entre as galinhas, seu coração era de
águia, seu corpo também, sua natureza era de águia.
É uma metáfora da condição humana diante da mediocridade. A águia nasceu
para reinar, é a rainha de todas as aves. Não foi feita para ficar num
galinheiro ciscando por minhocas e ração. Encaixa com a teoria de Friedrich Nietzsche
e seu Übermensch, o super-homem, que foi deturbada para servir base para as
ideologias nazistas, mas que, sim, tem um contexto científico forte: o homem é
um ser em evolução e em um futuro não muito distante vai ser suplantado por uma
espécie superior. Sim, era o que os nazistas pensavam e sim, é o que vai
acontecer. O problema é que o nazismo cometeu uma série de erros de
interpretação, que embora a irmã de Nietzsche, Elisabeth, detentora da obra do
irmão, apoiasse o nazismo de corpo e alma, Friedrich Nietzsche não era santo,
mas falava de outra coisa. Falava de um ser moralmente superior, mas no sentido
da ética. Com a morte de Deus, deveríamos agora buscar fazer o certo através da
ética, porque é a coisa correta a ser feita e não porque estamos sendo julgados
por um ser imaginário que nos daria prêmios ou castigos. Para Nietzsche, com a
morte de Deus não haveria mais quem culpar, ou a quem recorrer. Cabia ao homem
arcar com as consequências e responsabilidades referentes ao bem e ao mal.
Mas sim, Nietzsche pregava que alguns merecem mais que os outros. Que
existem realmente na sociedade águias e galinhas. Eu tenho uma visão diferente.
Acho que todos nós somos águias para algumas coisas e galinhas para outras. O
problema é que está cheio de águia querendo se encaixar no galinheiro e muita
galinha tentando voar.
De certa forma, sim, eu sempre me achei uma galinha no futebol tentando
jogar com as águias. E se tem uma coisa que aprendi com esse diário é que a
decisão já foi tomada. No fundo, eu sempre me recusei a ser uma galinha no
futebol. Vou ser águia ou vou morrer tentando. E a coisa vai dando resultado.
Última pelada marquei três gols e ainda perdi um quarto que doeu muito
não ter feito. Estou correndo muito, mesmo não tendo ido a academia. Mas volto
amanhã com toda força.
O primeiro gol foi com a ponta do pé, desviando o suficiente para
enganar o goleiro. O segundo foi um chute rasteiro que passou debaixo do goleiro
e o terceiro foi um chute forte de fora da área. Mas corri, driblei, dei bons
passes. Mas também errei alguns passes que não podia errar. Estive bem na marcação,
fui e voltei no campo com velocidade. O fôlego vai muito bem, obrigado. Está
sendo gostoso correr e não cansar. Mas sim, é uma coisa típica minha, ficar
choramingando justamente o quarto gol que acabei perdendo. A bola veio em um
passe preciso e toquei firme na bola com o lado interno do pé. Sem firula, preciso.
Mas a bola foi para fora, apesar do gol vazio. É estranho porque eu fiz tudo
certinho e a bola foi para o lado errado. Se tivesse parado a bola e chutado,
talvez desse tempo para o goleiro se recuperar. Enfim, coisas do futebol. Em uma
semana de grandes decisões na vida, resolvo que essa insistência com o futebol
é uma metáfora para algumas decisões que precisavam ser tomadas há muito tempo
na vida.
Nessa fábula do James Aggrey, eu sempre imaginei que, se a águia
continuasse morando no galinheiro, acabaria morrendo. Talvez até matasse
algumas galinhas, devorasse outras, reproduzisse com muitas, mas no final, a
águia morreria cedo e morreria infeliz.
Uma águia num galinheiro da vida, pode ser uma criatura extremamente
desajeitada, desengonçada e com uma facilidade enorme para irritar as galinhas.
Mesmo quando as galinhas querem proteger e até amam a águia, entendo que é
difícil manter uma criatura que sempre dá mais despesas do que uma galinha;
sempre chama mais atenção; incomoda mais; sempre cria uma expectativa maior. O
problema é que, mesmo as galinhas que amam a águia, não entendem que aquela
criatura não foi feita para viver em um galinheiro, não foi feita para ter
emprego de galinha, para ganhar salário de galinha e definitivamente, não foi
feita para se encaixar naquele mundinho medíocre das galinhas. De fato, a águia
tem uma natureza que assusta as galinhas, ela exala desprezo pelo galinheiro e quando
vê uma galinha, não vê um ser igual, vê uma presa. Porque a águia é um maldito
predador. A águia é o Übermensch de Nietzsche. Vi esse olhar de medo no meu
primeiro emprego como jornalista quase 20 anos atrás. A editora do jornal quis
me mandar embora porque morria de medo de mim. Um mês depois eu peguei o
emprego dela. Tinha apenas três meses de formado. Talvez a insistência no futebol
tenha a ver com tentar entender também como é ser uma galinha e tentar ter
compaixão. Nietzsche não acreditava em compaixão. Talvez ele estivesse com razão
de um certo ponto de vista. Compaixão consigo mesmo, é sinal que a águia está
abandonando sua própria natureza para se acomodar à vida de galinha. Quando se
conforma em não ser mais águia, é sinal que o predador já está morrendo. E isso
está fora de questão.
Por essas e outras, talvez a única solução para a águia seja abandonar
de vez as galinhas que ama para parar de dar prejuízo a elas. Dar prejuízo para
quem te ama também está fora de questão. E como na metáfora de Aggrey e depois
imortalizada por Boff, a águia tem que levantar voo e, a partir de janeiro, a
águia levanta voo. Talvez esse voo termine com a águia se espatifando no chão,
mas é melhor que morrer aos poucos. Enfim, essa decisão está tomada. Já neguei
demais minha natureza. Viver como galinha não é vida e a vida é para ser vivida
e não suportada.
Saldo de 2019:
44 jogos
34 gols
44 jogos
34 gols
Clinton Davisson é jornalista, mestre
em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor da série de livros
Hegemonia, Baluartes e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.
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