Eu tinha 12 anos e quem me ensinou foi um moleque de 10.
Sim, um garoto que usava uma bermuda muito engraçada, feita pela mãe. Parecia a
roupa do Chaves. Mas ele fazia igual a um treinador de verdade. Me ensinava a
chutar com toda a paciência do mundo. Eu chutava, errava o gol, isolava a bola
e ele mantinha a calma e dizia: “Tudo bem, eu vou buscar a bola, fica calmo e
tenta de novo”. E o cara era meu professor mesmo, me ensinou a matar no peito,
a cabecear... Aprendi muito com ele. Mas tinha um outro, um lourinho encapetado
que jogava muito, mas muito, mesmo.
Este, porém, vivia brigando comigo, me provocando porque eu
era mais velho e era um perna de pau. E quando digo brigando, falo nas vias de
fato. Socos e pontapés. Uma vez peguei ele no colo e arremessei longe de tanta
raiva. Assim, eu ficava lá: o aprendiz de 12 anos de dois moleques de 10. Deu
certo. Aprendi, eu acho.
Entre uma briga e outra, o louro encapetado foi se tornando
meu amigo também. Foi uma coisa estranha porque ele me chamou para sair, fiquei
tão desconfiado que cheguei meia hora atrasado e lá estava ele esperando. Fomos
ao cinema, viramos amigos. Na verdade, até hoje, esses dois são meus dois
melhores amigos neste mundo.
Os anos se passaram e ele fez 14 anos e foi fazer teste em
São Januário no poderoso Vasco da Gama. Era certo que entraria. Ele era muito
bom. Sempre achei que ele acabaria na Seleção. Me chamou para fazer companhia.
Fomos eu, ele e o pai dele de carro para São Januário. Lembro que no carro
tocava uma fita do Engenheiros do Hawaii, acho que escutamos a música “Tribos e
Tribunais” umas dez vezes entre Volta Redonda e o Rio de Janeiro.
Chegando lá, o pai dele cismou que eu também deveria fazer o
teste. Falei que não levei chuteira. Um cara arrumou para mim. Entrei num
ônibus e fomos para um lugar ali próximo. Acho que era o campo do São
Cristóvão. Um campo de terra, sem um tufo sequer de grama. Sem grama e sem
responsabilidade, eu joguei leve, feliz. Corri o campo todo e num escanteio fiz
um gol de cabeça.
No final, saí contente. Fui perguntar para meu amigo como
foi. Ele não tinha passado. Mas conseguiu agendar um outro teste para a próxima
semana. Mesmo assim, mesmo tentando disfarçar, vi que ele estava chorando.
Aquilo era realmente importante para ele.
Quando fui devolver as chuteiras, o técnico me chamou. “Você
aí, grandão. Fica aí. Fala com teu pai que você vai ficar”. Entendi que eu, o
perna de pau, tinha passado na peneira do Vasco da Gama. Logo eu, que no começo
odiava futebol, que comecei a jogar com 12 anos. O cara ainda emendou: “Golaço
de cabeça! Tu tem raça e sabe se posicionar na defesa”.
Eu falei que não fui eu quem fez o gol. Eu não sei quem era
o tal técnico. Nunca mais vi. Mas ele era esperto. Ele entendeu. “Eu vim só
para acompanhar”, falei baixinho para que o meu amigo não percebesse. Ser
jogador de futebol era o sonho dele, não o meu. Ao menos não naquela época.
Naquela época eu tinha a ingênua ilusão que estudar no Brasil me levaria a
algum lugar. “Você é amigo, mesmo”, disse o técnico. “Mas pensa direito. Qualquer
coisa, volta semana que vem”. Nunca mais voltei.
Quando o amigo veio e perguntou o que houve, eu disse que o
cara ficou puto que estraguei a chuteira... Ele não falou nada. Nunca perguntei
depois se ele acreditou na mentira ou não.
Pois é... Deixando para trás a década de 80 e voltamos à
pelada de hoje, sábado, último dia de agosto, de 2019, foi para fazer uma
despedida decente. Vou ficar apenas um mês sem jogar futebol. Ficarei tomando
anti-inflamatório e tentarei não engordar. Mas a última pelada foi tão ruim que
resolvi transformá-la em penúltima. Assim sendo, resolvi fazer um jogo de
despedida que fosse decente. E foi!
Continuo correndo bem. Fiz boas jogadas. Teve um momento que
entendi que não dava para ficar indo e voltando na defesa e para o ataque,
então revezava. Hora ficava na frente, hora defendia. O gol foi o famoso gol de
videogame com uma boa troca de passes iniciada pelo meu eterno garçon, Bruno
Kaehler. Só tive o trabalho de tocar para a rede. Ainda chutei duas vezes, mas
o goleiro defendeu. Numa delas, dei um corte seco para dentro, limpei e chutei.
Se tivesse mais um segundo para mirar, teria sido gol.
Claro que nunca mais vou ter 16 anos. Mas me pergunto o
quanto posso melhorar, me aproximar do sol e sair da sombra daquele meu eu do
passado, que jogava com a camisa 14 do Moinho de Vento?
Porque às vezes, fica claro que há um abismo entre o Tato
que parou de jogar em 2003 com o Clinton que voltou aos “gramados” em 2015. Não
que eu chegasse a ser um grande craque, mas tinha meus dias... Ninguém aliás, me
chama mais de Tato, agora é só Clinton.
A pergunta se responde quando a gente joga novamente com a
metáfora: futebol x vida. Às vezes, penso que tudo que aconteceu nos últimos
anos, tantas cosias ruins que não valem a pena serem postadas. Na verdade, o segredo
é justamente esquecer as coisas ruins. Esquecer as bolas na trave da vida e
lembrar dos golaços. Mesmo aqueles que a gente teve que dizer que não fez
porque era a atitude mais correta naquele dia. Em outras situações, enfrentamos
pessoas que que insistem em dizer que não fizemos gol algum, ou que o gol não
valeu. E tem uma situação ainda mais crítica: quando as pessoas que não querem
nos dar crédito somos nós mesmos. Assim, quando paramos de dar crédito às
nossas próprias vitórias, de certa forma, paramos também de viver.
Na metáfora futebol x vida, entendo que o meu gol mais
bonito não foi um que não esquecerei nunca, com 14 anos, no campo do lago,
driblando todo o time do Flamengo, inclusive o goleiro. Era o “Flamenguinho de
Barra Mansa”, mas não interessa. Driblei o time inteiro, foi tão bonito que meu
pai invadiu o campo para me abraçar. Nem aquela bola no ângulo no treino do
Voltaço. Muito menos aquele gol afirmei não ter feito em São Januário. O gol
mais bonito foram três. Uma menininha de olhos muito claros que me olhou pela
primeira vez nos braços da enfermeira em 1992. Parecia um sorvetinho e que hoje
é uma bela psicóloga trabalhando em São Paulo. E dois meninos que nasceram
juntos em 2007. Nasceram lindos como a mãe, mas muito doentes, a enfermeira os
chamava de “bebês graves” e que tive que esperar um mês para poder abraçá-los.
Hoje sinto os três longe de mim tanto fisicamente quanto fraternalmente. E isso
acontece há tanto tempo que sinto que estou perdendo a autoria deles. Sinto que
estou perdendo o direito de me dizer pai destas três pessoas. Com eles, percebo
que também perco a mim, mesmo. Deixo de ser o Tato, deixo de ser o Clinton e me
transformo em alguém que não é nada.
Às vezes, os gols
mais bonitos são aqueles que comemoramos sozinhos, sem alarde, em silêncio e de
longe. Costuma-se dizer que, quando criança, choramos bem alto para chamar a
atenção. Na vida adulta aprendemos a chorar em silêncio, à noite, no escuro,
não por gols perdidos, mas com saudade dos golaços que já fizemos e mantemos a
esperança de que voltem a fazer parte da nossa vida.
Talvez essa seja a grande motivação em relação ao futebol:
uma necessidade intrínseca de novamente encontrar a mim mesmo dentro do
gramado. Foi lá que me encontrei da primeira vez. Talvez eu ainda esteja ali.
Quem sabe?
Saldo de 2019:
30 jogos
21 gols
Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação,
pesquisador, roteirista e escritor. Autor de quatro livros, sendo um deles
“Fáfia – A Copa do Mundo de 2022”, que será relançado este ano.
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