domingo, dezembro 15, 2019

Especial de Natal – Porta dos Fundos


Grupo humorístico choca fanáticos religiosos ao apresentar Jesus gay e alerta para o perigo do fundamentalismo cristão
Ao completar 30 anos, Jesus (Gregório Duvivier) volta de 40 dias de tentação no deserto e se depara com uma festa surpresa organizada por seus pais, José (Rafael Portugal) e Maria (Evelyn Castro). Entretanto, ele volta do deserto com Orlando (Fábio Porchat), um amigo gay com quem aparentemente está tendo um relacionamento.
Para complicar a situação, tio Vitório (Antonio Tabet), aparece sem ser convidado na festa e diz que é hora de Jesus saber que ele, e não José, é seu pai “biológico”. Claro, tio Vitório é ninguém menos que Deus, o todo poderoso.
Agora, Jesus precisa decidir se segue os caminhos de um messias como quer seu pai, ou continua numa vida mais simples e menos problemática. Entretanto, o aparentemente inofensivo Orlando revela ser o Diabo e que todo o processo no deserto fazia parte de suas provações e tentações. Agora, Jesus e o Diabo terão um combate final para salvar a humanidade.
Feito de forma debochada e provocativa pelo grupo Porta dos Fundos, o especial de Natal começa meio lento, com a chegada dos três reis magos com diálogos fracos e bobos. Mas a chegada de Jesus faz a história decolar e cria-se dois pontos de tensão na história. Por um lado, Jesus tentando a mesmo tempo esconder as experiências constrangedoras no deserto com Orlando enquanto precisa aceitar a nova condição de saber que seu pai é na verdade seu Tio Vitório, ou melhor, Deus, que ainda lhe mostra que, assim como seu pai “biológico”, Jesus também tem poderes sobrenaturais. O outro ponto de tensão é a insistência de Vitório ao querer seduzir Maria, sob os olhares ciumentos e desconfiados de José.
No final, o especial diverte e não perde mais o pique. Fazendo referências a várias discussões recentes da cultura Pop, inclusive a famosa piada referente a Vingadores: Ultimato sobre como o Homem-Formiga poderia derrotar Thanos...
No quesito interpretação, o maior destaque é Antonio Tabet no papel de Deus, que, com uma ajuda do roteiro, consegue imprimir a história uma discussão religiosa pertinente, sobre as diferenças conceituais de Deus entre o primeiro e o segundo testamento. Na verdade, é o único ponto que separa a história de um mero besteirol divertido. Embora o fato de ter um Jesus que teria tido experiência homossexuais como parte do processo de tentação seja uma clara e explícita intenção de alfinetar parte do fanatismo religioso que vem ganhando terreno na mídia e na política brasileira nos últimos anos, o fato é que não é uma elemento gratuito e acaba entrando de forma orgânica no roteiro. Na verdade, estranhei o fato de a história dar a entender em parte que a homossexualidade seria uma das artimanhas do diabo e não algo natural. Ou seja, em certo momento, temos a impressão que aquele Jesus não nasceu gay, mas foi tentado pelo Diabo. Algo que o roteiro felizmente corrige no final.
Fundado em 2012, o Grupo Porta dos Fundos herdou a tocha do Caceta e Planeta e usou a internet para dar uma verdadeira injeção de vigor ao humor brasileiro no século XXI. A partir daí, toda uma nova geração de humoristas começou a aparecer em uma profusão que depois de um tempo começou a superar o próprio Porta dos Fundos. O grupo também encontrou resistência por parte da população mais conservadora quando o humorista Gregório Duvivier começou a assumir posições políticas que iam contra os interesses de conservadores e fanáticos religiosos.
Com um humor politicamente incorreto desde sua criação aproveitando a liberdade das redes sociais, o Porta dos Fundos, sofreu críticas paradoxais, já que a maioria dos radicais religiosos que criticavam o humor do grupo, se diziam a favor do politicamente incorreto, mas desde que fosse contra minorias como mulheres, gays, pobres, deficientes e negros. Já contra religiões só se fossem de origem africana ou árabe. Ou seja, eram cristãos fundamentalistas que chegaram até a fazer campanha contra o filme produzido pelo grupo em 2016.
Contradições
O termo evangélico, ou crente, é normalmente usado no Brasil para designar seguidores de religiões cristãs derivadas da reforma protestante iniciada por Martinho Lutero em 1517. A ideia era fazer frente ao domínio católico e principalmente aos princípios excessivamente radicais como a impossibilidade de realizar qualquer interpretação da Bíblia que não fosse a oficializada pelo Papa. A burguesia na época abraçou a ideia de, por exemplo, não ter que se envergonhar do lucro. O movimento protestante simbolizava uma liberdade religiosa, uma visão mais flexível da Bíblia. Se a Igreja Católica adotasse este procedimento menos radical, poderia evitar, por exemplo, a punição a Galileu Galilei, por dizer que a Terra era girava em torno do Sol ou mesmo a morte de Giordano Bruno por afirmar que poderiam existir outros mundos.
Nos dias de hoje, com a Igreja Católica buscando uma linha mais humanista com o Papa Francisco, grande parte dos protestantes do mundo defendem exatamente uma interpretação menos flexível da Bíblia. Ao menos no que se refere a temas como aborto e homossexualidade. Embora não haja estudos conclusivos, é bem provável que o fundamentalismo cristão seja ainda uma minoria nos países mais evoluídos, mas que vem crescendo no Brasil como consequência de vários fatores como deficiência no sistema educacional, pobreza, alto índice de criminalidade e falta de credibilidade dos órgãos de imprensa.
O crescimento da pobreza e o agravamento da crise econômica nos últimos cinco anos no Brasil, bem como a instabilidade econômica vem criando um campo fértil para a radicais religiosos como ocorreu em países islâmicos nos anos 60 e 70. Embora o Porta dos Fundos seja apenas um grupo de humor, é bom lembrar que foi tentando explicar astronomia com um livro de humor provocativo que Galileu Galilei foi condenado pela Igreja Católica quase 500 anos atrás.
Ao terminar de assistir o Especial de Natal, fiquei com a sensação de ter visto algo divertido, engraçado, mas que também é um manifesto político. O pensamento que me veio foi meio assustador, pois, cutucando fanáticos religiosos com vara curta, provavelmente o Grupo vai conseguir bater recordes de audiência no Netflix, mas será que ainda é seguro fazer isso no Brasil?
Em tempos em que o país sofre ameaça de se tornar uma espécie de Talibã Cristão dos Trópicos, fazer da arte uma forma de protesto é praticamente obrigatório para todos aqueles que defendem a democracia. Mas na história recente muitas pessoas, como Vladimir Herzog, pagaram com a vida por causa disso. Fica a torcida para que não se precise chegar a este ponto e que como no Especial de Natal, Jesus também saia vitorioso e se imponha com seus ideais de tolerância e amor ao próximo.

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