quinta-feira, novembro 28, 2019

Diário de um peladeiro XXXV – Diga-me com quem andas e te direi se vai ganhar o jogo


Quem é fã de Stranger Things e/ou da recém versão cinematográfica de IT, vai morrer de inveja, pois aquilo foi minha infância nos anos 80, tirando é claro, os monstros e os palhaços. Éramos um grupo bem unido. Eu, Ricardo de Melo, Christiano, Marcelinho, Ricardo “Sabão”, Alisson (meu irmão), Lenielson, Zé Antônio e, claro, nossa única integrante feminina, Helisiane.
Devo dizer que, apesar do tempo, nós ainda tentamos manter essa ligação e nos sentimos conectados. Mesmo no caso de quem já morreu, como o Marcelinho, eu sempre ia visitar seus pais depois que ele morreu e nossa família mantém contato. Dei o nome do meu filho de Marcelo por homenagem ao Marcelinho. Mas isso já foi contado aqui.
Também já contei que meus dois professores de futebol foram o Ricardo e o Christiano. Dois dos melhores jogadores com quem já tive a honra de jogar. Ambos dois anos mais novos que eu. Ou seja, eu tinha 12 anos e eles 10. Era engraçado.
Mas hoje vamos focar na questão da organização do time infantil do Moinho de Vento. A marcação dos jogos, a “convocação”, a escolha dos adversários que iam lá nos enfrentar, volta e meia caia no colo meu e principalmente do Christiano. Ambos dividíamos a função de jogadores e cartolas e não tínhamos nem 16 anos na época.
Chegamos inclusive a contratar e demitir dois técnicos: o já falecido João, um senhor com uma ampla bagagem futebolística e o Márcio “Caboclo”, que até hoje acho o melhor técnico de futebol que já tive e nunca tive a chance de dizer o quanto ele me ensinou e o quanto sou grato. E dói saber que, com 16 anos, eu “demiti” injustamente da função um cara que tinha 26... Coisas de Clinton... Só rindo, mesmo.
Eu e o Chris tínhamos pensamentos muito diferentes. Acho que por isso dava certo. Vivíamos em atrito, mas era um atrito produtivo e amigável. Confiávamos muito um no outro. Mas na hora de marcar os jogos, sempre discordávamos. Pois, eu acreditava sempre em formar um bom time, chamar caras bons para completar e fazer isso com antecedência. Já o Chris era fã do “na hora a gente resolve”. Não tem frase que me irrita mais do que “na hora a gente resolve”.
Mas não é justo botar a culpa no Chris. Primeiro porque quem tinha o contato dos jogadores era ele. E nos anos 80 não tinha internet e nem celular. Chamar jogadores era um trabalho 99% em cima dele e isso incluía ir durante a semana na casa das pessoas chamar uma criança de 13 anos para jogar futebol e convencer o pai dessa criança a levá-la num clube que ficava a 20km da cidade. E os outros membros do grupo não ajudavam muito. Não era muito justo eu cobrar tanto dele esse trabalho sempre. Mas eu cobrava.
Também tinha o fato dele gostar de ser o protagonista. Ele foi certamente o melhor jogador com quem já joguei. Lembra muito o jeito do Messi jogar hoje em dia e bastante do Maradona e do Zico. Para mim, no fundo, ele achava que resolveria a parada sozinho e o resultado é exatamente o que acontece com a Argentina do Messi. Pois é, não funcionava.
Faltando meia hora para o jogo, eu tinha que ir com o Marcelinho para o meio do mato, na fazenda próxima, procurar por crianças que nunca tinha visto na vida e perguntar se queriam botar uma camisa e jogar futebol para completar o time.
Lembrando também que o Brasil de 30 anos atrás já era habitado por brasileiros. Então, a gente convidava antecipadamente vários garotos da região e, claro, eles não apareciam e a gente tinha que ir na casa deles no meio do mato para lembrar. Eu penso, “que sorte dos garotos do Stranger Things terem só monstros para enfrentar...”.
Mas eu carreguei por anos essa dúvida: é melhor armar um time forte para vencer ou um time fraco para se destacar?
Bom, nesta última terça-feira, quando começou o jogo, vi que o time foi divido entre coletes vermelhos e coletes verdes. O time de vermelho ficou muito mais forte e eu fiquei no time de verde. Logo no primeiro passe que dei, a bola foi para o lugar errado. É uma forma elegante de dizer que errei o passe de forma ridícula. Foi uma sucessão de erros e derrotas. As regras ali são: a duração de cada partida é de sete minutos ou dois gols. Eu saía, esperava sete minutos e entrava. Tomava dois gols em 3 minutos e saía. Comecei a me questionar novamente se não era melhor deixar o futebol para a galera que sabe jogar. Que enxerga direito... Que não tem problemas de coordenação... Blá, blá, blá...
Em determinado momento, esperando meus sete minutos do lado de fora, comecei um diálogo interno. “Por que você está aqui? Não é para combater a ansiedade? Não é para aprender a lidar com a depressão?”. Cheguei à conclusão que tenho que tentar fazer o melhor possível dentro das possibilidades. Fazer o melhor tem a ver também com tentar me divertir e, se possível, aprender alguma lição aqui para levar para a vida, além de suar, dar o sangue ali!
Lembrei que foi assim no jogo do Flamengo contra o River Plate na Libertadores, não foi? Eles viraram o jogo porque acreditaram até o fim. Não seria legal eu tentar botar em prática isso?
Respirei fundo. Faltavam 15 minutos para acabar o jogo. Entrei determinado a correr com nunca, a dividir todas, ganhar todas as jogadas. Enfim, entrei com outra postura! Só que, desta vez, entrei no time de vermelho...
Como estava com a minha sagrada camisa do Flamengo de camelô, não coloquei colete. Vi que alguns do time falaram para colocar o colete vermelho por cima da camisa do Flamengo. Mas ela já era vermelha, é meio tradicional na pelada, quem tá com camisa do Flamengo não precisar usar o colete vermelho. Sempre foi assim nas nossas peladas, ora pois... Não vi motivo para colocar. Ao menos não no começo.
Agora no time mais forte, passei a jogar muito melhor. Fiz o primeiro gol recebendo uma bola na intermediária e tocando rasteiro por baixo do goleiro. Foi um frango. Escutei alguém falar “Pensei que fosse gol contra”. Mas estava tão feliz de fazer um gol com a camisa do Flamengo na semana em que o Flamengo foi Campeão da Libertadores e Campeão Brasileiro que não pensei muito a respeito. O segundo gol foi um chute lindo de fora da área que pegou no ângulo esquerdo do goleiro. Sensação de alegria indescritível.
Comecei a ganhar todas as divididas, driblar todo mundo, tudo que um jogador normal faz e eu não costumava fazer há muito tempo. Mas só quando recebi o terceiro passe de presente de um adversário que o meu próprio time chamou atenção para um fato: a minha camisa do Flamengo, para quem não sabe, é rubro negra, não vermelha, acredita? E naquela iluminação noturna estava sendo confundida e muito com o colete verde. Meu próprio time estava deixando de tocar a bola para mim, confundindo as camisas.
Achei uma coisa muito irônica. Porque tenho problemas de visão, principalmente ao jogar à noite. Por um momento, dei aos meus companheiros de time e adversários um gostinho de como é ser eu. Pois volta e meia erro passes por não enxergar direito...
Mas para não deixar dúvidas e não criar mais problemas, vesti o colete vermelho. Agora, devidamente uniformizado, continuei ganhando todas as divididas, dando bons passes e fiz mais dois gols. Teve um momento em que driblei uns três e fiquei de cara para o gol. Poderia ter até passado a bola, mas estava literalmente de frente para o crime. Chutei, mas a bola não saiu legal e foi para fora. Teve vários momentos que poderia passar a bola e passei. Teve momentos em que poderia passar a bola e chutei para gol. Umas bolas entram, outras não. Sim, é para isso que jogo futebol. Para entender que temos que tomar decisões, arcar com as consequências e assumir as responsabilidades em cima destas decisões.
Reflexões a parte, uma coisa ficou bem clara: eu joguei bem melhor quando joguei no time mais forte.
Não sei se isso representa uma vitória na minha discussão com o Chris. Acho que tudo é relativo. Mas a lição que entendi nesta terça, com meus quatro gols, é que eu na vida sempre tentei me cercar dos melhores e sempre funcionei melhor no futebol, nos relacionamentos, na profissão e, enfim, na vida, quando havia um “time bom” do meu lado e principalmente quando quem estava do meu lado, jogava para mim e não contra mim.
Desculpe o parágrafo de autoajuda que virá a seguir, mas é inevitável e necessário.
O problema não é jogar em time mais forte ou mais fraco. O que houve terça-feira é que, depois que cometi uma série de erros, meu time parou de tocar a bola para mim e aí, o time se tornou mais fraco de verdade. Quando entrei no time de vermelho, entrei com outra postura e comecei a receber bolas boas. Ganhei confiança e comecei a jogar bem. Uma coisa influencia outra. Uma postura firme e positiva costuma gerar respostas firmes e positivas. Não foi culpa do time de verde, mas um processo autodestrutivo e coletivo que praticamente todo mundo está sujeito. Não deveria acontecer, mas acontece. 
Saindo de terça-feira e indo para a vida. Os verdadeiros times ruins são aqueles que a gente mesmo com atitudes firmes e positivas, recebe de volta bolas quadradas. Percebi quantas vezes eu já estive em um time ruim de caráter. De você dar o seu melhor e a pessoa que deveria estar jogando do seu lado, está contra você. Isso é fácil perceber, quantos casais nós já vimos que não perdem a oportunidade de desfilar todos os defeitos um do outro em público? Quantos colegas de trabalho fazem nossa caveira quando damos as costas, às vezes, são pessoas pelas quais você já comprou briga. Pessoas que você defendeu. Pessoas que você pensava que eram do seu time, mas na verdade jogavam contra você.
Então, sim, escolher um time forte para jogar contigo na sua vida, é escolher quem gosta de jogar com você; quem gosta de estar com você; quem gosta de te elogiar, que se preocupa de verdade contigo. Às vezes, temos que trocar mesmo de time, mesmo que o jogador seja uma esposa, um marido, um funcionário, um chefe, ou mesmo um parente.
Então, como fiz quatro gols de novo, agora estou com 38 gols na temporada. Faltam só dois para alcançar o Gabigol. Vou dar o melhor de mim, garanto que vou jogar com toda raça, vontade, respeito e lealdade. Esteja em que time estiver.

Saldo de 2019:
46 jogos
38 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, cineasta e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.

Nenhum comentário: