quinta-feira, novembro 21, 2019

Diário de um peladeiro XXXIV – A superstição da camisa de camelô


É engraçado falar de superstições. Porque vivemos numa época em que começaram a desconfiar das pseudociências, como a astrologia, homeopatia, numerologia, mas elas ainda são levadas a sério, muito a sério. Essas crenças esquisitas se refugiam nas lacunas entre ciência e religião. E estas lacunas são tão grandes que cabem teorias absurdas como terraplanismo e criacionismo. Por mais que as pessoas entrem em estado de negação, a astrologia não é menos absurda que o terraplanismo e o criacionismo. Sinto muito, mas é verdade.
Mas o assunto “pseudociências” é um troço complexo. Não podemos chamar astrologia de religião, mas também perdeu o status de ciência, embora eu também não ache justo esquecer que foram os astrólogos que descobriram os planetas mais próximos, Mercúrio, Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, milhares de anos atrás. Religiosos foram os primeiros cientistas, os primeiros filósofos. Na verdade, as fronteiras entre religião, superstição e ciência sempre foram misturadas.
Na Roma antiga era normal você ir se consultar com um especialista em ler a sua sorte nas entranhas de um pombo. Na idade média entrar num barco sem tocar numa ferradura trazia má sorte e podia ser punido com a morte. Sim, muitas superstições se transformaram em leis. Muitas práticas religiosas vieram de superstições e, se parar para pensar, o processo de criação de uma superstição é de observação e constatação. Ou seja, é um elemento embrionário do que viria a ser o método científico.
Só começaram a se desembaraçar o que religião, do que é superstição e do que é ciência há pouco tempo. Estranhamente um marco histórico recente no processo de desatar destes nós foram de mágicos profissionais como Holdini 100 anos atrás e James Randy nos anos de 1970 e 1980. Ambos se especializaram em desmascarar “médiuns”. Holdini, conhecido até hoje como um dos maiores mágicos de todos os tempos, ia nas casas das pessoas para sessões espíritas e usava os conhecimentos como mágico profissional para revelar as artimanhas dos supostos médiuns. Isso valeu uma briga feia com ninguém menos que Sir Arthur Conan Doyle o célebre criador de Sherlock Holmes e que foi um dos grandes propagadores do espiritismo ou espiritualismo na Inglaterra. Desmascarado publicamente e de maneira humilhante por Holdini, Doyle rompeu a grande amizade que tinha com o mágico.
James Randy desmascarou falsos médiuns nos anos 70, principalmente o famoso Uri Geller. Que hoje se diz apenas um bom mágico. Randy também detonou mundialmente a homeopatia com uma ajuda involuntária do Programa Fantástico da Rede Globo.
Não vou entrar no mérito se existem, ou não, médiuns de verdade. Até porque afirmar isso seria muita prepotência da minha parte. Mas que existem médiuns charlatões, isso não se discute.
Enfim, Randy foi um dos responsáveis pelo fim da era dos médiuns charlatões nas tevês americanas e logo depois no Brasil e no resto do mundo. Randy deu um grande impulso no combate às pseudociências e eu sou um grande fã dele.
Dito isso, eu confesso contraditoriamente que ainda sou supersticioso em muitas coisas, sim! Sempre entro em campo com o pé direito, sempre! Sempre que vejo uma mariposa, acho que vai dar azar, enquanto grilos ou gafanhotos sempre associo à sorte. Já tive minha fase de acreditar em astrologia quando era adolescente, hoje não consigo levar isso a sério, afinal, sou cético como todo bom canceriano...
Este ano criei uma superstição esquisita (como se todas as superstições minhas e de todas as pessoas do mundo já não fossem): na última semana de setembro, eu comprei uma camisa do Flamengo no camelô. Afinal, ainda não fiquei rico com cinema. Quando ficar, eu compro uma camisa oficial do Flamengo. Comprei a 14 do Arrascaeta. Tanto porque gosto do jogador, como por ser o número que eu jogava.
Na mesma semana fiz um monte de gol. Saí todo feliz. Mas aí veio o jogo Flamengo x São Paulo. Claro que vesti a camisa no jogo. E o Flamengo empatou com o São Paulo no Maracanã.
Desde então, evito jogar com a camisa do Flamengo antes dos jogos do Flamengo. Vestir a camisa durante o jogo nem pensar. Dá azar para o Flamengo.
Aí, teve um jogo meu, se não me engano, foi 19 de outubro. Só sei que joguei mal pra burro. E estava com a bendita camisa 14 do magnífico Giorgian De Arrascaeta. Logo em seguida teve jogo do Flamengo x Grêmio, dia 23 de outubro. E o resultado foi 5x0.
Pois bem, minha superstição é que se eu jogar mal com a camisa do Flamengo, dou sorte para o Flamengo. Se jogar bem e fizer gols, dou azar.
Para tentar “quebrar a maldição” cheguei a vestir a camisa no dia do jogo Flamengo x Vasco. Mas tirei antes do jogo começar porque fiquei com medo. Mesmo assim, acabou 4x4. Ou seja, superstição confirmada.
Assim sendo, fui - na última terça-feira - jogar com a maldita camisa e sempre repetindo em minha mente: “Clinton, você é um cara do meio acadêmico. Um pesquisador. Em pouco tempo vai ter um doutorado. Como pode acreditar que fazer gols com uma camisa fará com que o universo prejudique o Flamengo?”.
Então foi, desafiando todas as regras, neste ato de rebeldia com o universo, que entrei em campo na terça-feira com a camisa do Flamengo, número 14, do Arrascaeta, comprada no camelô.
Para meu azar e para sorte do Flamengo, eu joguei muito mal. Principalmente na primeira metade do jogo. Basta dizer que perdi todas, TODAS as partidas que disputei. E não foi de propósito, não foi consciente, não foi pelo Flamengo. Parecia que algo me prendia, mesmo. Claro que, jogar mal, não significa correr menos. Mas estava totalmente fora de sintonia. Cometi até um erro primário que foi tentar marcar o goleiro na saída de bola, deixando um atacante livre. Por conta disso, o time adversário fez um gol.
Acho que só nos últimos 20 minutos do jogo, é que respirei fundo e tentei me libertar daquela armadilha de achar que não sou merecedor de estar ali, de que não sou capaz de jogar tão bem quanto os outros e todos aqueles pensamentos negativos com os quais tenho que lidar na vida e no campo.
No final, me libertei disso e comecei a ser mais ousado. Obriguei o goleiro a fazer boas defesas, pelo menos duas vezes. Em determinado momento, peguei a bola e saí driblando, 1, 2, 3, 4 jogadores. Os dribles não foram de graça. Levei muitos pontapés, inclusive resolvi que, a partir de semana que vem, não jogo mais sem caneleira. Enfim, me soltei no jogo, mas já era tarde. Nenhum gol, nenhuma partida vencida. Se depender da superstição, o Flamengo vai ser campeão no sábado com muitos gols. Se isso acontecer, vou fazer até uma campanha com os amigos e leitores do Blog que forem flamenguistas para trocar minha camisa de camelô por uma original. Combinado?

Saldo de 2019:
45 jogos
34 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, cineasta e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.



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