sábado, novembro 09, 2019

Diário de um peladeiro XXXII – Entre O Senhor dos Anéis e a escolha de Matrix


Em O Senhor dos Anéis há uma frase que sempre me faz refletir: “Todo mal caminha para Mordor”. Significa, entre outras coisas, que todos os seres ruins, tem alguma ligação com a terra de Mordor, o local tenebroso onde Sauron, o senhor do mal, forjou o Um Anel, que dá título ao livro. É lá, de Mordor que emana todo o mal e é para lá que tudo que é ruim caminha. Ou seja, quando as coisas começam a dar errado, é sinal que vão continuar dando errado. Não importa o que você faça, todo mal caminha para Mordor.
Uma vez quando eu tinha lá meus 19 anos, eu estava tentando estacionar o carro quando um cara de caminhão chegou bem perto de propósito porque considerava que a vaga era dele. Acabei arranhando levemente a lataria da Christine, era nome que dei para meu lindo Monza vermelho na época. Fiquei pau da vida, não rolou briga porque apareceu um guarda de trânsito na hora H. Já fiquei muito irritado a partir dali. Depois, fui com meu pai buscar um estande para a livraria que a gente tinha na época. Quando voltávamos, um carro bateu por trás com toda a força na bunda da Christine que ficou toda a amassada. O motorista veio com uma conversa mole de “cada um paga o seu”, eu deixei meu pai resolver para não perder a linha com o cara. Fui consolar o filho do cara que devia ter uns oito anos e estava chorando no banco de trás do carro. Acho até que o imbecil do cara achou que eu estava tentando intimidar o menino. Sei lá. Gente burra e covarde tende a achar que todo mundo é burro e covarde.
No final, o cara concordou em pagar e fomos até a casa do sogro dele, que pagou o prejuízo. Mas foram momentos tensos. O cara ainda tentou chamar uns amigos para tentar intimidar. Eu juro que estava com pensamentos de carnificina na hora. Eu detesto gente covarde. Sempre detestei. Acho que burrice e covardia andam juntas. Mas tudo resolvido. Entretanto, foi um dia tenso. Eu praticamente não lembro de outros dias na vida em que tive tanta raiva junta. Pois, tentei engolir o primeiro arranhão no carro, dizendo para mim, mesmo, “deixa disso, calma que a vida vai melhorar”, quando vem um amassado enorme depois. Parece que, quanto está ruim, as coisas só pioram. Parece que todo mal caminha para Mordor.
Estas duas últimas semanas foram assim. Tive uma notícia muito ruim na segunda-feira passada em relação a um projeto que mandei para a Lei Murilo Mendes na Funalfa. Não foi aprovada por um detalhe burocrático que poderia ser facilmente resolvido se eu estivesse atento olhando o bendito site da Funalfa todo santo dia. Mas não olhei. Depois veio notícias ruins sobre o Doutorado. Também problema de falta de atenção. Eu tenho inveja daquelas pessoas que conseguem botar a culpa de tudo nos outros, no governo, nos pais, nos amigos, na sorte... Infelizmente, eu não tenho essa habilidade. E vamos combinar, a culpa nos dois casos foi minha. Claro, tem um desconto da bendita depressão e do maldito estresse pós-traumático que ataca justamente a questão do foco, motivação e da atenção. Mas e aí? Mas e daí? O fato é que vou ter que lidar com isso. Esse é o mundo adulto e, no mundo adulto, todo mal caminha para Mordor.
Dito e feito. Apareceu um trabalho de artes gráficas, mas claro, já passou mais de duas semanas e nada de me pagarem. Tive que pedir dinheiro emprestado para poder deixar os boletos em dia. Se tem uma coisa que equivale a minha Criptonita, é ficar sem receber. É meu calcanhar de Aquiles.
E a cereja do bolo veio com meu tio, irmão do meu pai, que está num estado de saúde muito grave em Volta Redonda. A conexão que eu tenho com este tio e meus primos, filhos dele, é muito grande. Quando pequenos, minha prima morou durante muito tempo com a gente. É o mais próximo que tenho de uma irmã de verdade. Não pude ir lá visitar meu tio. O que me deixou ainda mais frustrado.
(atualização) Meu tio morreu nesta manhã de domingo, 10 de novembro de 2019. 

Enfim, final de outubro e começo de novembro, foi realmente o pior período do ano. Eu literalmente caminhei por Mordor.
O resultado é que nem fui na academia de tão desaminado com esse conjunto da obra. Aí, não teve jeito. A depressão voltou bonita, poderosa, absoluta. Parecia que eu dividia o quarto com um dementador do Harry Potter. Não era só ficar nadando naquela piscina de autopiedade. Era tentar fazer as coisas e simplesmente não conseguir. Mal conseguia sair da cama. A dieta também foi para o espaço. Dane-se. Não conseguia sentir nem raiva.
Nem queria ir no futebol. Mas sei que é a minha principal arma contra depressão. Fiz um esforço. Mas só agora, quatro jogos depois, é que estou tentando retomar o meu diário de peladeiro.
Nestes quatro jogos, só fiz um gol. Acho até que estou jogando bem. Estou correndo, chutando muito, dei chapéu de calcanhar, dei passe de calcanhar, driblei, fiz jogadas muito boas. Claro, que meu joelho inchou e minha coluna deslocou e doeu sem parar por uns três dias seguidos. Afinal, todo mal caminha para Mordor.

Nos dois últimos jogos então a coisa pegou. Deu para sentir a depressão dentro do campo, como os dementadores invadindo o estádio de Quadribol do Harry Potter enquanto ele jogava. Não saiu nenhum gol e hoje, quando terminou o jogo, tive que usar aquela máscara de alegria, contando piadas e fazendo todo mundo rir. Melhor maneira de disfarçar que você está tendo uma crise de ansiedade e está louco para chorar copiosamente. Não por não ter feito gol, ou por ter jogado mal, mas porque a vida é uma bosta, a existência não tem sentido, tudo está dando errado e porque todo mal caminha para Mordor.
Paradoxalmente, sim, o futebol ainda funciona para deixar a depressão menos depressiva. Presumo que se tivesse ficado em casa dando saltos ornamentais na minha piscina de autopiedade, estaria muito pior.
Enfim, juro que, ao começar a escrever este texto, não tinha intenção de deixar uma mensagem positiva. Porque na vida a gente tem que estar preparado para entender que nem todo dia a gente vai ganhar, nem todo dia aquela menina linda que você conheceu vai querer te beijar, nem sempre você vai fazer gol, ou vai ganhar dinheiro, ou vai receber um simples abraço de alguém que você até então confiava muito. Tem dias que a derrota vem e fica, não vai embora. Eu não sou coach, não é este o objetivo aqui. Otimismo, luta e perseverança não garantem absolutamente nada. Como eu disse neste Blog em outro texto, todo cadáver no Everest já foi um dia uma pessoa extremamente motivada e fora da zona de conforto.
Mas aí, sou obrigado a lembrar que teve coisas boas este mês também. Teve a amiga e companheira de aventuras, Gabi Bowen. Sim, ter uma bonitona de 1,80 te dizendo coisas bonitas o tempo todo e como tudo vai dar certo no final, é uma grande arma para destruir os argumentos da depressão. E pela primeira vez no ano, não foi o futebol, nem academia, que me incentivava a continuar lutando, mas o fato de estar fazendo algo em que acredito. No caso, terminando um curta metragem e me preparando para fazer outro. Deste ponto de partida, lembro dos amigos que me ajudaram e ainda ajudam. Lembro da família se desdobrando para me dar condições de luta. Não dá para deixar o desânimo ofuscar essas pessoas.
Isso tudo me leva a outro paradoxo interessante. Por mais que eu esteja abatido, nocauteado pelos ocorridos recentes, me sinto mais otimista. Aliás, há muito tempo que não tenho tanta confiança que as coisas vão dar certo. E isso é muito esquisito já que um monte de coisa está dando muito errado. Mas algo mudou em mim por dentro e acho que este otimismo é irreversível. Não sei explicar o Porquê. O projeto rejeitado pela Funalfa, agora vai para o Catarse e pronto. Vida que segue.
Então, muito a contragosto, a mensagem final deste texto é de otimismo. Sim, as coisas não deram certo, sim, deu tudo errado. Mas aí, eu deixo Mordor e O Senhor dos Anéis para trás e lembro do diálogo final entre Agente Smith e Neo no final de Matrix Revolutions:
“Por que, Sr. Anderson? Por que, por quê? Por que faz isso? Por que se levantar? Por que continuar lutando? Acredita que está lutando por algo mais do que sua sobrevivência? Pode me dizer o quê? Será que sabe? Será por liberdade? Verdade? Talvez paz! Será que é por amor? Ilusões, Sr. Anderson. Defeitos da percepção. Criações temporárias de um fraco intelecto humano tentando desesperadamente justificar uma existência sem sentido ou meta! E todas elas são tão artificiais quanto a própria Matrix. Embora só a mente humana pudesse criar algo tão insosso quanto o amor. Deve ser capaz de enxergar, de saber, a esta altura que não pode vencer! É inútil continuar lutando! Por que, Sr. Anderson? Por que persiste"?
E Thomas Anderson, ou melhor, Neo, responde com a simplicidade inabalável dos heróis: “Porque foi isso que eu escolhi”.



Saldo de 2019:
43 jogos
31 gols

Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Autor da série de livros Hegemonia e Fáfia – A Copa do Mundo de 2022.



Um comentário:

Bete disse...

Muito bem Senhor Anderson (Senhor Clinton)