terça-feira, julho 02, 2019

Diário de um peladeiro – Parte XVIII – Roberto Carlos e O Senhor dos Anéis

25 de junho de 2019
Composição de Roberto e Erasmo Carlos, Detalhes, enfatiza em seus versos que “detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes para esquecer”. Quem fez o link desta lição filosófica musical com o futebol foi meu amigo Marcelo Alvez Pereira. Nos distantes anos 80, ele me viu chutando a bola no campinho no Moinho de Vento, em Barra Mansa-RJ, e observou que eu não tinha o hábito de mirar. 
- Por que não chuta no gol? – perguntou. 
Respondi que tentava chutar o mais forte possível e não estava preocupado com para onde a bola ia. Tentava apenas imprimir força e acertar o muro. O gol era um detalhe.
- Mira no gol! – insistiu. – Assim, quando você estiver num jogo, vai ter mais chance de mirar corretamente.
- Mas isso é um mero detalhe – repliquei irritado.
Marcelinho cantou exatamente o trecho da música. “Detalhes tão pequenos de nós dois. São coisas muito grandes para esquecer”.
Eu ri daquilo, mas passei a mirar apenas porque ele estava enchendo o saco. Com o tempo, esse detalhe realmente fez a diferença na minha breve carreira futebolística.
Marcelo estava lá em casa quando eu e meu irmão tivemos nosso primeiro contato com o mundo mágico de J.R.R. Tolkien, vimos o trailer de O Senhor dos Anéis. Mas não era o de Peter Jackson. Isso aconteceu muito antes. Tratava-se da fantástica animação de Ralph Bakshi de 1978. Provavelmente assistimos em 1986. Tratava-se da mesma produção que apresentou Tolkien a Peter Jackson. Vimos o desenho em casa e depois disso eu procurei os livros para comprar. Das milhares de coisas que me saltaram os olhos naquela epopeia fantástica, estava as relações de amizade e lealdade entre os personagens. Nos apêndices da história, hobbit, Peregrin Took, batiza seu filho de Faramir, homenageando um humano, antigo companheiro de batalha.
Na pelada de hoje, 24 de junho, voltei a jogar futebol de salão depois de muitos anos. A última vez foi em setembro de 2013. Quase seis anos. Exatos 13 quilos atrás. Na época, fiz seis gols numa única partida. Até hoje, um dos gols mais bonitos. Uma bomba no ângulo do meio de campo da qual provavelmente voltarei a falar muito nesta coluna pseudofutebolística, pseudofilosófica e verdadeiramente autorreflexiva.
A noite não estava tão fria quanto nos outros dias. Joguei com uma turma do ICHL - Instituto de Ciências Humanas e Letras da UFJF. O que me leva a automaticamente a simpatizar com todo mundo ali. Eram, afinal, companheiros de balbúrdia.
Fiz a coisa certinha de novo, subindo um morro a pé para aquecer antes. Falar que meu preparo físico melhorou, mas ainda está uma droga, virou lugar comum nesta coluna literária. A novidade é que, desta vez, a região lombar da coluna voltou a doer. Acho que foi a primeira vez no ano. O futebol de salão te cobra mais “ginga” aquela versão da “força” de Star Wars que, segundo o filme do Pelé, todo brasileiro tem. Sim, nós somos os Jedi do futebol. Claro, que, se você quebra sua coluna na sexta vértebra lombar, você perde a ginga. Então, estou há 12 anos tentando aprender o jeito alemão cintura dura de jogar. 
Até que não fui mal. O fôlego está voltando. O time estava com um problema sério de posicionamento, mas quem liga? A ideia é correr, chutar a bola, esquecer dos problemas e, no meu caso, entender como anda a minha ansiedade. E é aí que veio a melhor notícia. Só encontrei resquícios dela. Praticamente foi embora. Algo interessante de se perceber num grupo em que eu não sabia o nome de ninguém e vice-versa.
Fiz um gol, chutando de primeira no meio das pernas do goleiro e dei passe para outro. Devo ter dado uns cinco chutes. Me lembro que em um deles, eu estava livre, na meia direita. Deu tempo de escolher como iria chutar. Como era salão, escolhi de bico, forte. Tentei mirar como o Marcelo ensinou. Mas os detalhes, sempre os detalhes... o bico não pegou como deveria na bola e o chute saiu mascado. 
Em outro momento, na prova definitiva que minha ansiedade está de malas prontas para voltar para o inferno, é que me julguei digno de roubar uma bola no meio de campo, driblar dois adversários e o goleiro. O que dá 85% do time. No último drible, porém, veio o detalhe. A bola foi um pouquinho forte demais e eu rápido de menos. Perdi o ângulo e junto com ele o que seria meu gol mais bonito de 2019. Tudo por detalhes tão pequenos de nós dois: eu e a bola. 
Sério, me senti como o Gollum perdendo seu precioso anel nas cavernas. Pensei todos os “ses” que poderiam ter me levado a conseguir fazer aquele gol: “Se eu tivesse colocado um pouco menos de força ao driblar o goleiro”, “se eu tivesse um pouco mais de agilidade”, “se eu tivesse uns 20 anos a menos”, “se tivesse voltado para a academia”, “se minha coluna não estivesse se quebrado 16 anos atrás”.
O futebol é como a vida. Os erros e os acertos estão nos detalhes. Marcelo estava certo. Claro que estava. A gente segue nesta jornada tentando resgatar o futebol perdido depois de 12 anos parado. “Você pode encontrar as coisas que perdeu, mas nunca as que abandonou.”, escreveu Tolkien em O Senhor dos Anéis. Eu nunca abandonei o futebol. Apenas achei que havia perdido junto com a coluna em 2003.
Marcelo morreu em decorrência de um enfarte em 2005. Foi um dos grandes amigos e companheiros de batalha que encontrei na vida. Seguindo a tradição de O Senhor dos Anéis, botei o nome do meu filho de Marcelo. E eu sempre miro no gol quando vou chutar. Embora nem sempre a bola vai para onde a gente aponta.
Saldo de 2019:
18 jogos
13 gols
Clinton Davisson é jornalista, mestre em comunicação, pesquisador, roteirista e escritor. Ao contrário da maioria dos brasileiros, ele nunca foi a Harvard, mas publicou quatro livros, sendo um de futebol. É perna de pau assumido, mas não se importa com isso.


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