A série de tevê Star Trek, que completa 50 anos este mês de
setembro de 2016, foi criada por um piloto de avião e policial que resolveu ser
roteirista. Gene Roddenberry poderia fazer uma trinca com Antoine de
Saint-Exupéry e Richard Bach como meus autores preferidos, todos eles pilotos
de avião e com uma inocência e um otimismo que beiram a breguice. Sim, o universo imaginado por Roddenberry
mostra um futuro promissor para a humanidade que deixará não apenas as
limitações do planeta Terra como as limitações sociais, políticas,
religiosas... O homem transcenderá a fome, a pobreza, as guerras, os
preconceitos, as injustiças e se tornará algo mais. Se transformará na
tripulação da USS Enterprise, o suprassumo do ser humano: eficiente, determinado,
justo, corajoso, conciliador, cheio de compaixão. Não é preciso hesitar nem um
segundo para determinar que, de todos os universos criados no século XX, seja a
galáxia distante de Star Wars, a Terra-média de O Senhor dos Anéis, Westeros de
Game of thrones e até o mundo dos “não trouxas” criado por J.k. Rowling, a
Federação dos Planetas Unidos de Star Trek é de longe o de melhor qualidade de
vida.
Agora com Star Trek – Beyond temos o mito nerd Simon Pegg
como roteirista e o inesperado Justin Lin, um chinês conhecido por ignorar as
leis da física em seus filmes em pró de elementos, digamos, hiperdramáticos. Ao
contrário de J.J. Abrams, Lin é fã assumido das séries de TV. E não é que ele
mostrou realmente uma boa parte da essência da série? Lá estava o clima de
amizade, companheirismo e o idealismo. A visão de um futuro onde as guerras se
tornam obsoletas e a ciência em seu estado puro triunfam sobre o ego, a
ganância, a vaidade.
Como de praxe, muitas homenagens, principalmente ao falecido
Leonard Nimoy que geram pelo menos dois momentos de suor nos olhos. Nem mesmo a
última série de Star Trek que foi ao ar na TV, a série Enterprise, ficou de
fora das homenagens, com direito a uma nave da classe NX. Estas homenagens desta
vez foram mais sutis ou mais orgânicas à trama que os momentos forçados do
filme anterior que chegou a mostrar Spock gritando “KHANNNN” com a sutileza de
um zagueiro da terceira divisão do futebol carioca.
Apesar de tudo, não é o melhor filme dessa “Trilogia do
Abrams” (o criador de Lost continua como produtor). O primeiro filme ainda é
mais interessante, mas esse é mais equilibrado e realmente lembra um (bom)
episódio superproduzido da série de TV. Um problema do filme está no vilão que
nunca entendemos direito o que diabos pretende e por que? Como ele conseguiu
tamanho poder de fogo e por que resolveu usá-lo só naquela hora? Quem são os
ajudantes dele? Outro problema que se repetiu nos três filmes: por que os
escudos da Enterprise e da Federação parecem nunca funcionar contra os vilões?
E tem a história: depois de três anos da missão de cinco
anos da Enterprise para explorar o espaço profundo, Kirk começa a ficar
entediado, chegando a se questionar se era essa mesmo a vida que ele queria
para si. Até que, ao atender um pedido de socorro, se depara com um novo e
poderoso inimigo que, apesar de não entendermos muito bem o que quer, sabemos
que é mal e faz maldades. Presos num planeta desconhecido, sem poder fazer
contato com a Federação, nossos heróis tem que usar suas habilidades para evitar
que um vilão chamado Krall dê o créu na tripulação da Enterprise e de uma
estação espacial próxima.
Além das qualidades já citadas, tem a personagem de Sofia
Boutella, Jaylah, uma Bad Ass que rouba cenas no melhor estilo coadjuvantes da
Disney salvando a história com altas doses de simpatia e acrescentando boas
cenas de luta corporal que, se parar para pensar, sempre foram marcas
registradas da série na geração clássica e na nova. A rima (termo muito usado
pelo diretor George Lucas para classificar cenas que os personagens parecem
voltar a pontos semelhantes durante fases diferentes da jornada do herói) feita
pela música Sabotage dos Beastie Boys, conectando com a primeira cena de
introdução do jovem James Kirk lá no primeiro filme com a cena de batalha decisiva,
foi um dos pontos altos do filme e boas sacadas do diretor, bem como a presença
de uma nave da classe NX no filme, sim, quem assistiu a última série de Star
Trek a ir ao ar na TV, a polêmica Star Trek: Enterprise, vai entender do que
estou falando.
A polêmica mais falada atualmente sobre a sexualidade do
piloto Hikaru Sulu foi mostrada de forma eficiente, sutil e respeitosa em duas
cenas curtas: uma mostra a foto da filha do personagem ao lado de seu painel de
controle e outra em que ele encontra seu parceiro (ponta do co-roteirista Doug
Young) e sua filha na estação espacial. Honestamente, para uma série que sempre
se notabilizou por lutar por causas polêmicas como o racismo, preconceito,
guerra do Vietnã numa época em precisava ter muita coragem para fazer isso nos
EUA, a cena foi sutil até demais. O ator George Takei, o Sulu original, gay assumido,
declarou que não gostou da homenagem, provavelmente um gesto de pura humildade
ou mesmo modéstia. Particularmente achei a homenagem perfeita e totalmente
compatível com a utopia de Gene Roddenberry combatendo preconceito com
inteligência e elegância.
Com resultado irregular nas bilheterias mundiais, a morte de
Leonard Nimoy e a morte prematura do jovem Anton Yelshin, não será surpresa se
este terceiro Star Trek encerrar esse ciclo no cinema. Acho que cumpriu bem a
função de lembrar ao público atual que existiu Star Trek e uma nave chamada
Enterprise. Mas fico no aguardo para que a série retorne à tevê que seu habitat
natural e de forma mais moderna e com a força que sempre teve.
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