domingo, agosto 26, 2012
sexta-feira, agosto 24, 2012
Minha viagem com um imortal - 3ª e última parte
Chegamos a Juiz de Fora cansados. Não é uma viagem longa.
Apenas três horas do Rio até o Bar Salvaterra onde paramos para encontrar a
comitiva. Mas a Serra de Petrópolis tira qualquer um do sério.
O fato é que cheguei como um herói. O homem que pegou carona
com o imortal! Falou-se até em uma estátua de Papel Machê em tamanho natural
dentro da sala do Diretório Acadêmico Vladimir Herzog. Ficaria logo ao lado do
boneco enforcado feito em homenagem ao jornalista que havia sido morto por
enforcamento pela Ditadura. Era uma homenagem bem questionável, diga-se de
passagem. Mas quando eu questionei isso aos dirigentes do D.A. responderam que
ninguém acha de mal gosto homenagear Jesus Cristo com bonecos crucificados.
Preferi não estender a conversa. Enfim, fui mais festejado talvez que o próprio
Cony, que esbanjava bom humor e gostava claramente do assédio dos estudantes.
De lá, tomamos café e rumamos para o hotel. No caminho, descemos pela Av. Independência e passamos
em frente à Praça Presidente Antônio Carlos onde pudemos ver o Quartel do
Exército.
- Olha, eu fiquei preso ali! – gritou o imortal apontando o
dedo como uma criança que lembra das férias que passou na casa da avó.
Pensei comigo, eram realmente outros tempos os da Ditadura.
O cara perdeu emprego, foi preso e exilado do país. Mas levava tudo numa boa,
falando dos guardas como se fossem os primos sacanas que lhe puxavam as cuecas. Conversei com ele sobre isso. Disse que,
antigamente, prendiam, torturavam e matavam. Hoje, simplesmente não dão emprego
a pessoa e pronto. Ele respondeu que a luta na época era por liberdade de poder
dizer aquilo que se pensa. A luta foi vitoriosa, afinal, pois hoje, ninguém
liga para isso. Dizer o que pensa é natural. Ninguém vai entrar na sua casa e
te prender com medo de suas ideias. Isso foi, realmente uma vitória.
Anos depois, soube que o Cony recebeu uma indenização
milionária pelos “inconvenientes” que envolviam mais de seis prisões e um
exílio. Lembro que muita gente criticou indignada porque acha que os danos não
foram tão grandes. Talvez não fossem, mas não estou qualificado para julgar
isso. O fato é que o valor recebido pelo Cony é merecido, na minha humilde e
insignificante opinião, como prêmio porque ousou combater um regime que
oprimia, entre outras coisas, o livre pensamento. Acho que um país começa a
trilhar sua grandiosidade quando reconhece os erros e as injustiças que
cometeu.
A noite a palestra tinha casa cheia. Precisamos usar o
auditório do curso de Direito na Faculdade ao lado, porque o nosso humilde
auditório da Comunicação não comportaria todo mundo.
- Está muito cheio, né? – comentou Cony visivelmente
surpreso com o amontoado de gente que se espremia para vê-lo.
Novamente, tentei usar do meu costumeiro e falho bom humor e
soltei:
- Será que pensam que é o Paulo Coelho quem vem aqui hoje?
- Será? – perguntou seriamente. – Mas ele vem? O povo não
vai ficar chateado se aparecer só eu?
Tentei explicar que era uma piada ruim, mas no final, tive
que gritar para ser ouvido no meio da fuzuê da multidão. Ele entendeu e gostou
de saber que todas aquelas pessoas estavam ali por causa dele, mesmo.
Fui promovido então de carona a segurança do imortal. Tive
que lidar com excesso de gente querendo falar com ele. Pedindo coisas malucas:
“Escreve neste papel algo que preciso fazer para me tornar um grande
jornalista”, pediu um calouro.
O Edílson fazia a função com uma elegância sem comparação. E
eu incorporando o espírito dos Corleones já querendo empurrar, bater e dizer
que não era pessoal.
Na hora da palestra, o protocolo organizado pelo nosso D.A.
foi realmente engraçado. Porque pediu para subir várias pessoas à mesa com o
Cony, não as deixou falar nada e depois pediu para descer causando risos
nervosos em todos. O Cony pediu para não ser chamado de imortal. Foi como o
Pelé querer ser só o Edson, ou seja, totalmente inútil.
Da fala dele eu lembro pouca coisa. O que marcou foi a
afirmação da recusa de fazer Bundas, a revista que causava certo furor na época
por ser uma tentativa de continuação do lendário Pasquim.
- Me chamaram para fazer Bundas e eu respondi que fiz bundas
a vida toda. Não era o que eu queria no momento – comentou o imortal diante das
risadas da plateia.
Após a palestra e uma tumultuada saída do auditório fomos
para um restaurante, o Faisão Dourado, acompanhados da professora Leila Barbosa
de literatura, uma das pessoas mais simpáticas daquela faculdade. Apesar de ser
perto de onde ele esteve preso, Cony parecia bem a vontade. Talvez se sentisse
a vontade por estar perto de onde “morou” em JF. Lá nos sentamos e conversamos
sobre vários assuntos.
Eu, como sempre, quis agradar e puxei assunto sobre operas.
Algo que, na época, não entendia bulhufas. Cansado de tentar fazer pose,
resolvi ser eu mesmo e falei de futebol. Para minha surpresa, ele puxou os
assuntos que eu mais gostava: ficção científica e cinema. Foi uma conversa
agradável. O imortal e eu, conversando como dois iguais. Lembrei do Dino da
Silva Sauro que, no Dia do Arremesso, poderia jogar a sogra no poço de piche e
isso o fazia ter direitos iguais aos de seu superior, Senhor Richfield. Me
senti ali, naquele momento, um escritor de verdade. Como se, sentar-se a mesa
com um grande escritor e o fato dele saber meu nome, me tornassem algo digno de
nota.
Foi quando Carlos Heitor Cony comentou sobre 2001 – Uma
Odisseia no Espaço e falou da experiência de ver o filme de Kubrick no cinema.
Raíssa estava lá, com seus belos olhos azulados iluminando o prato de ravióli e
perguntou o ano da produção o filme.
- 1969 – respondeu Cony.
- 1968 – corrigi.
- 1969 – insistiu o imortal.
- 1968 – insistiu o reles mortal, mais humilde dos humildes.
- 1969!
- 1968 – tornei a dizer e argumentei. – Eu fiz um trabalho
sobre o filme outro dia para a faculdade, por isso a memória ainda está fresca.
De fato, o que me marcara na data era que todas as imagens
impactantes de Kubrick haviam sido mostradas na tela um ano antes do homem
descer na Lua. Argumentei ainda que os filmes demoravam a chegar ao Brasil
antigamente. Guerra nas Estrelas, por exemplo, chegou ao Brasil em 1978. Apesar
de ter sido lançado em 25 de maio de 1977 nos EUA.
- Mas tenho certeza que o filme é de 1969! – afirmou Cony
com segurança.
- Vamos apostar? – provoquei.
- Vamos! – topou o imortal.
- Se eu estiver certo, você faz o prefácio do meu próximo livro!
- Combinado! – disse o imortal sem pestanejar. – E se eu
estiver certo?
- Tudo bem, eu faço o prefácio do seu próximo livro! – falei
com naturalidade. Todos riram, claro.
Bom, acompanhei Cony e Edilson até o hotel para explicar o
caminho novamente. Juiz de Fora não é exatamente uma cidade pequena, com seus
500 mil habitantes. Senti aquele aperto no coração. Era o fim da jornada ao
lado do imortal. Todos os meus sonhos e objetivos como escritor pareciam se
refletir na testa calva daquele pequeno grande homem. Ele era jornalista, era
escritor, era um formador de opinião. Tudo o que eu queria ser. Lembrei
daqueles programas idiotas que levavam fãs para jantar com seus ídolos, mas
eram cantores, atores e jogadores de futebol. Eu fui ator de teatro durante
cinco anos, em Volta Redonda, atuei e escrevi peças e até filmes. Fui cantor
durante três anos em Juiz de Fora e joguei futebol com frequência tão alucinada
que cheguei ao ponto de passar em algumas peneiras. Não, não estou querendo
desprezar essas profissões. Mas eu sou um escritor. Sempre quis ser um
escritor. Se vou ser famoso, ou se vou ser bom, não importa. Mas algo me dizia
que, naquele momento, eu estava mais perto da luz. Podia ser uma luz divina ou
mesmo aquela luz da varanda que queima as mariposas idiotas. Sim, talvez eu
fosse ali uma mariposa insignificante orbitando e tietando aquele cidadão. Mas
foi um momento de alegria para mim.
Nunca tive coragem de cobrar o prefácio. Ele prometeu que
leria o Fáfia e isso me dava mais medo que satisfação. Passados tantos anos,
ainda me recordo com alegria daquela jornada a um mundo de seios, ventres,
astronautas, militares e, sobretudo, um sujeito notável e imortal.