domingo, julho 31, 2022

O recorde do Fliperama e aquele rapaz idiota que apareceu (e sempre aparece)

 

Estava jogando fliperama. Era a primeira metade da década de 80 e fliperamas não ficavam em shoppings, até porque Shoppings não existiam no Brasil fora das capitais e eu estava numa cidade pequena, do interior de Minas Gerais.

Eu devia ser tão novo que minha mãe estava comigo no bendito Fliperama. Sabe o que é engraçado? Eu não tenho certeza se estava jogando Donkey Kong ou Pac Man. Só sei que naquele dia minha mãe comprou muitas fichas, porque era mais barato naquela cidade pequena.

E aí, de tanto jogar, finalmente, pela primeira vez na vida, deixei meu recorde naquela tela de maiores pontuadores. O problema é que não vi isso. Terminei de jogar e dei as costas para a máquina. E falei para minha mãe que já deu. Que queria ir embora.

— Olha lá, Tato! – apontou minha mãe.

Eu já estava na porta do Fliperama quando ela me mostrou que eu tinha colocado um recorde na máquina. Voltei correndo e fui lá tentar descobrir como escrevia meu nome ou minhas iniciais naquela tela enquanto minha mãe comemorava.

Assim que terminei, apareceu um cara surgindo de nada. Faz tanto tempo, mas tanto tempo, que não lembro que idade ele tinha, não lembro se era negro, branco, alto, baixo, magro ou gordo, e quando tento imaginar o rosto dele, lembro no mendigo do filme Cidade dos Sonhos. Com certeza era apenas um garoto, provavelmente bem-vestido, nada a ver com aquele mendigo medonho do filme que vi mais de 20 anos depois no cinema. Mas é assim que minha memória gravou. Talvez porque ele tinha a voz grossa. Não era a de um garoto, mas eu tinha o que? 10? 14 anos? Mas isso não importa, o que importa é o que ele disse:

— Você gosta de colocar seu nome nos recordes, né? – Havia um sarcasmo tão palpável na voz dele, que eu poderia sentir aquilo me abrando, podia sentir o cheio azedo do sarcasmo.

Aí, o cara foi falar com o rapaz que vendia as fichas. Falou com todos que estavam jogando. Só faltou subir na mesa e gritar:

— Ele tá colocando o nome dele no jogo! Não pode!

Eu já estava saindo, minha mãe já estava saindo. Não sei se ela ouviu, mas fomos embora e deixamos o homem reclamando.

Eu entendi na mesma hora, com entendo até hoje. Ele chegou e não me viu jogando. Chegou depois. Ou estava jogando outra coisa. Tudo o que ele viu foi eu vir da ponta do fliperama e colocar meu nome ali no recorde, como se tivesse trapaceado. Para ele, eu estava enganando todo mundo, inclusive a minha mãe.

Aquilo me deixou chateado. Tanto que voltei outros dias lá e joguei até encontrar o cara e fazer novamente o recorde na frente dele, para ele ver que eu não estava mentindo.

— Agora você fez o recorde – disse o mendigo monstro da Cidade dos Sonhos. – Sem jamais admitir que aquele recorde naquele dia era meu.

Eu penso nisso porque aquele foi só o início de uma série de situações em que pessoas desconfiaram, duvidaram e até afirmaram que eu não tinha capacidade, que eu não merecia alguma coisa.

Com o tempo, eu vi que não era só comigo. Que todo mundo já passou por uma situação parecida em que um desavisado resolve que você é ladrão, trapaceiro, corrupto, desonesto, fraco, incompetente, tudo isso baseado em uma observação rasa. Todo mundo já foi julgado dessa forma. E acho que é por isso que eu não lembro o rosto do rapaz. Porque aquilo se tornou para mim uma soma de várias pessoas, um Frankenstein de rostos colados ou sobrepostos. Para quem não sabe, o mendigo monstro de Cidade dos Sonhos é a própria protagonista, ou melhor, a atriz Naomi Watts, coberta de maquiagem de mendigo. Assim como ele representa as minhas dúvidas, meus receios, minhas inseguranças, tanto quanto representa todas as pessoas idiotas que me julgaram de uma forma errada e continuam julgando, julgando e julgando.

Mas assim é a vida. Um movimento constante de ter que provar o seu valor para o mundo, provar que merece estar nele. Provar para pessoas que talvez nem seja más, burras, ou idiotas, elas são apenas um reflexo dos horrores que habitam dentro de nós.

6 comentários:

Anônimo disse...

Excelente reflexão! Há sempre por aí um urubu para duvidar de nós, devemos sempre ter certeza de nossas capacidades! Grande abraço.

Guilherme Soldati disse...

Excelente texto.

Anônimo disse...

Excelente texto você e TOP!!!!!

Anônimo disse...

Fátima Fialho,

Anônimo disse...

Primo fiquei encantada com o seu lindo texto e a seus comentários passam na memória como foi fácil conseguir vecer, parabéns!!!

Anônimo disse...

Fátima Fialho