domingo, março 26, 2017

Trilogia Before





A trilogia "Before" do Richard Linklater é um dos projetos mais poderosos sobre a natureza do amor em todos os tempos. O mais surpreendente é que não foi um projeto, mas algo tão natural quanto despretensioso.

Começou em 1995 com o filme Antes do Amanhecer (Before Sunrise) com uma história simples sobre dois jovens se encontrando em um trem e resolvendo passar um dia juntos. Com atuações impecáveis de Ethan Hawke e Julie Delpy, eles nos apresentam o americano Jesse e francesa Celine. O filme mostra os dois se apaixonando quase em tempo real. Não há tramas complicadas, mistérios ou reviravoltas. Não tem um vilão ou desafio. Apenas duas pessoas conversando e se apaixonando enquanto caminham pelas belas ruas de Viena. E acredite, é um dois filmes mais românticos já feitos.

No final, ambos tem uma ideia típica da idade em que se encontram, na casa dos 24 anos: não trocar sobrenome, telefone ou endereço, mas se encontrariam em seis meses no mesmo local. E o filme acaba deixando para nossa imaginação descobrir o que iria acontecer àqueles jovens e belos amantes.

A história terminaria por aí se não fosse um desses acasos da vida. O diretor Richard Linklater, que tecnicamente pertencia à série C do cinema americano, produziu um sucesso de bilheteria, no caso, A Escola de Rock com o doidão Jack Black. E o ator Ethan Hawke foi indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por Um Dia de Treinamento. Com dinheiro, poder e fama, os dois resolveram arriscar a fazer uma continuação daquele filme que não pedia uma continuação. Foi aí que, em 2004, veio Antes do Pôr do Sol (Before Sunset), mostrando o que havia acontecido com Celine e Jesse nove anos depois.

Descobrimos que a avó de Celine morreu perto do dia do encontro e ela acabou não podendo ir. Jesse foi e ficou dias procurando ela mas sem sucesso. A vida deles seguiu de uma forma cruel. Ambos sonhando um com o outro. Jesse casou-se porque sua namorada engravidou. Continuou casado por comodismo e por amar o filho, sempre sonhando secretamente com aquela francesa do trem. Celine tocou a vida da melhor maneira que pode, mas também sem tirar o garoto americano da cabeça. Enfim, Jessie resolve escrever um livro sobre aquele encontro na esperança de que, caso o livro fosse um sucesso, ele acabasse encontrando aquela mulher novamente. Deu certo. Em um lançamento em Paris, Celine aparece na livraria e os dois voltam a conversar e se apaixonar.

Mas se antes eles estavam na casa dos 24 aos, agora estavam com 33. A perspectiva muda. O rosto e o corpo dos atores também. O fogo da juventude que incendiava seus olhares em 95 se transforma quase em um desespero. É como se um visse no outro, a última oportunidade de ser feliz na vida.

O filme novamente termina em aberto. Desta vez, porém, temos certeza que os dois vão ficar juntos. Era quase o único caminho a ser seguido para manter a sanidade de ambos.

Embora Julie Delpy não tenha se tornado uma atriz de sucesso em Hollywood, sua carreia foi bem na França. Hawke e Linklater continuaram a fazer sucesso mundial com a força do cinema americano.

Inevitavelmente, nove anos depois, veio o terceiro filme Antes da meia-noite (Before Mindnight) em 2013. Pessoalmente, fiquei morrendo de medo. Por favor, não mexam novamente com Celine e Jesse. Deixe os dois no “Felizes para Sempre”, por favor?

Mas o trio não me escutou e veio o que, até agora, é o filme mais premiado da trilogia. Chegando inclusive a ser indicado ao Oscar de roteiro original e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz para Julie Delpy. É o filme mais pesado também.

Assim como a vida, a história segue. Agora Jesse e Celine estão casados (ufa!) e tem filhas gêmeas. O filho de Jesse de primeiro casamento já é um adolescente e vive com a mãe nos EUA enquanto Jesse tenta viver na Europa com Celine. Agora os atores estão com 42 anos. Pela primeira vez, temos uma cena de nudez de Julie Delpy mostrando os seios, o corpo exibe uma barriguinha, rugas, muitas rugas em ambos. A barbicha de Jesse começa a embranquecer.

Embora a paixão continue, estão agressivos e cruéis um com o outro. Metade do filme é briga e feia. O assunto traição vem à tona. Aqueles jovens de vinte anos atrás, apaixonados, agora discutem se é justa a divisão de tarefas domésticas. Ele um escritor de relativo sucesso, se mudou para a França, - algo que para um americano é bem doloroso - para ficar perto dela, longe do filho. Celine, por sua vez, continua trabalhando. De noite, é ela quem cuida das gêmeas para ele escrever. Ou seja, ela faz aquelas típicas jornadas de trabalho dupla, no serviço e depois em casa. Ele escreve (acreditem em mim, é um trabalho que consome o indivíduo) e convive com a culpa de não estar sempre presente.

Em seu terceiro ato, a trilogia não tem medo de mostrar o lado mais cruel do “Felizes para Sempre” dos contos de fadas. Novamente a história termina de forma aberta. Novamente, entendemos que o casal vai permanecer junto, pois NOVAMENTE os atores nos convencem de forma absoluta de que Jesse e Celine se amam apaixonadamente e literalmente nasceram um para o outro. Mas algo mudou radicalmente e do casal apaixonado e puro de 1995, passamos para o casal estressado de 2013.

De certa forma, a trilogia “Before” é um magnífico estudo sobre o amor verdadeiro e poderoso que une aqueles dois seres humanos que acompanhamos durante vinte anos. Mas também pode ser um cruel filme de terror se assistido em sequência. A deterioração de corpos e sentimentos é honesta, cruel e assustadoramente bela. Manter uma relação tem seu preço. O “felizes para Sempre” cobra tributos e estes são altíssimos. Isso nunca foi mostrado nas telas de cinema com tanto realismo. Entretanto, talvez seja uma das poucas obras românticas a mostrar o amor em “tempo real” de forma tão verdadeira, sem idealizações, sem concessões. Ainda assim, continua sendo belo, continua sendo romântico.

Tecnicamente os filmes são impecáveis com diálogos, interpretações e direção de um realismo impressionante. Os atores vestem os personagens de tal maneira que muitos fãs se apaixonam por eles a cada filme. Os personagens são complexos, ricos e multifacetados. No último filme, Julie Delpy está particularmente impressionante pela transformação física e a francesinha inteligente de 95 deu lugar a uma mulher maldosa, sofrida e que parece prestes a explodir. Ethan Hawke não é exatamente um ator de grandes expressões, mas se entrega a Jesse e o jovem hiper-romântico vai se tornando um cara que carrega a culpa e o comodismo de uma vida em que consegue sucesso como escritor, mas fica dilacerado por viver em um país distante e longe do filho. A química entre os atores é tão grande que estranhamos muito o fato de nunca terem sido casados um com o outro.


Uma curiosidade ainda mais cruel sobre a trilogia, é que o primeiro filme foi inspirado em um encontro de Richard Linklater com uma jovem chamada Amy Lehrhaupt na Filadélfia. Assim como no primeiro filme, os dois passaram pouco tempo juntos e não mais se encontraram. Assim como no segundo filme, Linklater fez sua obra com um desejo secreto de poder assim, reencontrar aquela moça. Infelizmente, a vida foi mais cruel que a arte e Amy morreu em um acidente de moto meses antes da estreia de Antes do Amanhecer.

Acho relevante dizer que literalmente cresci e envelheci junto com Celine e Jesse. Quando vi o filme de 1995, pensei: É isso que eu quero para a minha vida! Quero uma Celine para mim! Encontrei e já estava casado com ela 2004 quando o casal se reencontrou em Paris e os apresentei para a então esposa. Quando assistimos em 2013 a Antes do Meia-noite, o impacto foi tão grande que nos separamos menos de um ano depois. Então, aconselho a assistir com muita cautela.

O diretor e os atores, que agora também são roteiristas, pretendem mostrar Jesse e Celine ainda mais uma vez, quando completar mais nove anos. Devemos encontrá-los agora na casa dos 50 e tenho medo do que vem por aí, embora tenha certeza que será incrivelmente belo e poético, além de, é claro, assustador. Confesso que aguardo ansiosamente por esse encontro com esses velhos amigos.

Enfim, apesar dessa crueldade em não dourar a pílula, não há como negar que se trata de uma obra poderosa e apaixonada que desconstrói o romantismo sem destruí-lo. A intenção não é botar água no chope dos românticos, mas dizer que, apesar de tudo, não há coisa melhor (e mais trabalhosa) que estar com a pessoa que amamos. Acredito que essa trilogia seja recomendada a todo mundo, mas principalmente a quem quer entender essa coisa louca que chamamos de amor.